28.8.14

Sorrateiro

Sinaleiro dos ventos
Histórias de um dia por viver
Afinar a alma com café
Lançar-se…

A tarde em comunhão mínima com o dia
Em visita calma
Episódios de infância
Pássaros, caminhões longínquos
Silêncio

Palavras aconchegam-se
Vertedouros: renúncia
Em pura observação
Confluência, rememórias
Entregar os dedos à tarefa
Transcendente

Pés descalços
Ombros desarmados
Sem relógio, bússola
Mapa ou guia
Quebrar o champanhe
Em si mesmo: embarcar

Berlinda de novas aventuras
Ossos e o tremor
Do inesperado
Despreparo como escudo
Desapego como lança
Avante!

Atroz sutileza do cotidiano
Deleitar-se
Versos simples
Qual doce de figo
Angústia?
Amigo.

Mais o desenho das letras
Menos o sentido íntimo
Roteiros de um dia sorrateiro
Pancada que se amorteça
Escrever é servir na bandeja
A própria cabeça


11.11.11

Portais

Não fez barulho, tampouco foi visível.  Matrix.  Realidade e ficção lado a lado.  Como sempre foi. As engrenagens dos portais lubrificadas com sonhos, ambições, dejetos, experiências humanas.  O que lhe conferia um cheiro untuoso de secreções.  Que, tampouco, eram perceptíveis.

Aconteceria a cada ano, a cada dois anos, ou a cada século.  As opiniões diferiam.  Para alguns, os portais estavam abertos a todo o tempo.  Mas isto os impedia de experimentar a realidade.  Eram os visionários.

Os mais esotéricos aproveitaram para acender incensos.  Outros acenderam incensos para espantar insetos.  Outros só queriam saber de lucrar com o negócio da venda de incenso.  O mesmo fenômeno, mas com discrepantes interpretações.  O mesmo fenômeno?!?

O cheiro de incenso roubava das narinas a percepção intuitiva da abertura dos portais.  Ou será que traduziam, precisamente, este lapso único e encantado? O ser humano, cujo olfato é a percepção mais manca e canhestra, arrebatado por esta faculdade selvagem e reveladora.  Por isto era preciso decodificar o fenômeno por um queimar lento de massala. E que o enlevasse. 

Um menino tomado pela mão de seu pai, pergunta: e o que isto significa?  Posso fazer um pedido?  O pai diz - não, não é uma questão de fazer pedidos, é uma questão de iniciar alguma coisa e levar adiante.  Que coisa? - retorna o filho.  Qualquer uma, mas é preciso ter vontade e lutar. Mas não é sempre assim?  Vamos embora, vai começar a chover.

Quando começar a chover, não vá embora.  Fique.  É outro sinal da abertura do portal.  Mas ninguém vê. A chuva não serve só para vender guarda-chuvas, molhar as plantas, lavar o carro de quem não tem tempo de levá-lo ao lava-jato ou mostrar que o tempo passa enquanto os pingos prateados caem. Apesar de ser, também, tudo isto.

A chuva, como todos os fenômenos da (íntima) natureza são possibilidades de interação com o mundo imaginário.  Cada um tem uma interpretação diversa do mundo.  Basta que não neguemos que chove.
Esqueça o portal.  Deixe a Matrix para lá.  Não há mesmo como compreender o absurdo. 

Elejamos a pele como órgão privilegiado de contato com o mundo: tomar banho de chuva vale mais. 
  

29.10.11

Bem-te-vi

Tomar a caneta e escrever
Eis o caminho de pedra
Continuar, enfrentar, escalar
Montanhas de frases
Vicissitudes, maneirismos, o óbvio
Palavra-dominó, palavra-dinamite

De que modo derrubam?


Na esquina da certeza
Deixar as botas
Daqui em diante não haverá mais
Daqui em diante
Quando os pés borbulharem
É hora de fazer as malas

Prosseguir


Agarrar um presságio e
Desancorar-se
Ferir, fluir, fruir
Desapegar-se
Para quem não paga a conta
Esquecer ou lembrar

Tem o mesmo preço


Remendar até ficar bom
Reajustar, repaginar
Retificar, realinhar, retomar
Verbos que se duplicam
Não dissipam o temor reinaugurado
(A não ser que existam outras)

Viver é uma vez só


Um naco de pão
Por um naco de pão
Se for tão-somente por um
Naco de pão
Ainda assim vale
Tomar a caneta e engolir a tinta
Para fazer descer um naco de pão
Escrever é doidice?

Experimente a rotina

Amigo de infãncia
Bom agouro, bem-te-vi
Velho tic-tac na parede
Em seu impossível desligar
Marmanjo feito fazendo criancices
Caretas, berros, impropérios, diálogos
Questionam, alavancam, expandem
Nas ruas, nas fileiras, nos palcos

Creme da sutileza é enternecimento

Procuro uma palavra que não se apresenta
Almejo uma expressão encoberta
Pode o poema carregar a beleza
Que se nega a denunciar?
Silêncio para ouvir, 
Ler de pálpebras cerradas
Nas entrelinhas do estupendo, amoitada

A diáfana mágica do corriqueiro


(Para Maurício De Barros)

22.10.11

Tapioca

O medo da vida veio
Quando andava pela Paulista
Veio o medo quando tomava um táxi
O medo do flanelinha, da criança no semáforo
Veio como todo o medo: forte e irracional
Irracional pois forte - e vice-versa
Em sua dupla natureza: vida de medo.

E multimodal: medo do ridículo, do tempo
Da fome, fissura, estresse, da solidão
E pior: da intimidade
Quando veio o medo da vida, sentiu um frio
Na Espinha: um punhal, maçarico
Flecha emborcada em curare
E paralisou-se - à mercê do medo:
É costume do medo banquetear-se

Benzedeiras, padres, pastores, amigos
Todos, tragados pelas engrenagens afiadas
Óleo, dejetos, excrescências do medo
O medo da vida era o pior dentre todos
Ao se travestir de medo da morte
E gargalhar-se à beira da apoplexia
O medo da vida atacava quando bebia
Uma xícara de leite

Tinha gosto de polpa de goiaba branca
Face sem contornos da cegueira
De si mesmo, saía e confluía
Consistência pastosa e inerte
Parecia voar, mas era um rodear
Em torna do cotidiano que bloqueava
Fingia-se um espírito de fora
A pôr em xeque a íntima chama

Transmutado em ciúmes, continuava
Alimentado pelo tédio, vicejava
Rosnava de satisfação incensado pela ira
E fazia temer o lugar comum
E os lugares amplos,
Soava o toque de recolher
E fazia crer que o melhor era anular-se
O esconderijo do diabo é a certeza

Só quando tocou o umbigo rugoso de sua mão
No imo essencial do núcleo da outra mão quente
A caminhar, pela Paulista
Foi que o frio na espinha
Não era mais medo da vida,
Era outro e oposto desfalecer
Cítrico, aveludado, recomposto
Goma de mandioca, tomates aromáticos,
Sal e pimenta-do-reino moídos:
Vida.

(Dominar é nosso opulento e medroso
Aparato de desgarrar-se
Da degustação direta
Do existir)

5.8.11

Escalafobética

Não, definitivamente não
Era a resposta caso perguntassem
Se era bela:
Grande demais, desengonçada
Carnuda em excesso

E, paradoxo: sem volúpia.

Simpática era como a definiam
E era isto o que tanto afugentava
Os homens
Não que ser antipática fosse solução
Mas era um motivo a mais:
Não se indispor com alguém tão gentil

Até quando acertava, recendia a erro

Algumas pessoas são azaradas:
Carma ou destino, escolha é que não é
Ou será que é?
Procurou aconselhamento com um guru
E este lhe recomendou um cirurgião

O cirurgião indicou trocar de guru

A pele não era escura o suficiente
E tampouco clara
Parecia negra de menos e branca de menos
O cabelo indeciso
Entre enrolar ou não
E não cedia ao vento

Mas era invejada pelo seu sorriso

Não que este fosse bonito,
Que nela, nada era
Mas fazia uma contraluz com sua testa
Que, dado o amarelado dos olhos,
Eram as únicas coisas nela a brilhar
Ainda assim, dum contraste desconjuntado

Beleza de um engarrafamento visto de helicóptero

O que a tornava uma personagem
De um exercício de escrita
Já que os poemas se guardam,
Covardemente,
A louvar o que é belo
Era sua confiança
De que um dia, por azar,
Iria encontrar um grande amor

O grande amor é o mais humano dos erros coletivos

Pois que, para ela,
Só podia ser azar mesmo,
Já que, dali em diante, por ciúmes
Perderia a sua ultima e grande virtude:
A tranqüilidade.
E eis que aconteceu.
Faz dois anos na data de hoje

Um minuto de silêncio das emoções

Um cenário vulcânico respingando a querosene
Entregar-se no escuro
E lamentar-se na alvorada
Indistinção de cores, peles e aromas
Duplo feito uno:
Quem ama o feio,
Que o ame bem.

Amor
Descolamento que ultrapassa a estética.
Não é questão de sorte
Escolha ou justiça:
É pura abdução.

2.8.11

Nuvens

Nuvens

Já disseram que eram feitas de algodão
Mas eu acho que não
E falaram que eram mágoas
De cima ou de baixo veio tanta água?

Numa eu vi uma bola
Joana, um carrapato a esmo
Francisco, o olho do dinossauro
E Marcela não viu nada, só nuvem mesmo

Lembra-me o cabelo de Walmor Chagas
A laranjada, Deus me perdoe
Incêndio na floresta
Nuvem negra é ovelha manca da insônia

Aquela ali escura, carregada
Lá adiante uma clara, fofinha, arregalada
Outra ligeira camada de fumaça
Quando começarão a derrocada?

Um balão atravessa o verniz etéreo
Outro avião rompe a massa amorfa
Sócrates fica ali no meio, desviando-se de tudo
Antigamente seu condomínio era mais seguro

Não quero morar nas nuvens
Ainda que me custe a licença poética
Mas é lá onde se paga, não é boato
Aluguel mais barato

E disseram que a tal negociação
Era nebulosa
Mas as que se fazem cá na terra, ao meio dia
Eminência parda, colarinho branco, vaca fria

Explicações do ciclo da vida
Terra e Gaia, evaporar-se das águas
Só para depois, densas, banhar-nos em bica
O que, afinal, precisamente, as justifica?

Suas conchas, revoltas e compartimentos
Recôncavos dos apaixonados e ansiosos
Servem - servem? - para recordarmos, pasmos
Noves fora zero: somos nós os nebulosos

Que a língua nos impeça de chover
Vá lá, aceitamos com um calmante
Mas que a física nos dificulte sublimar
Isto sim, é inquietante

É que somos densos, híbridos
Pretensiosos, confusos, voluntariosos demais...
Mas temos sex appeal - arre!
E outros dons da carne...

"Do Vidigal se vê o mar e as ilhas"
O sublime visto com pés e nuca na areia
Fazer as contas é não dar nó sem ponto:
Melhor - por ora - o chão e pronto.

1.8.11

Invenção

Não era tempo de verão
Mas, e dai?
Não era tempo de inverno
E chovia

Era outra coisa
Ciclos internos
Música gospel
E catar inspirações
Em erros
Ao redor

Era busca
E sono que não acabava
Era um verbo no presente
E empolgação
Raros suspiros
E acreditar

Ficar na duvida
Entre o otimismo e o pessimismo
Era sim
Quando, talvez,
Respirar era quiçá
Vela sedenta de parafina
E fios a queimar

E era um gesto
Explosão
E querer acordar
Uma criança insone
Tomar café de noite e
Cachaça ao amanhecer
Outro ciclo
Contorcer-se, redobrar-se

Fotos de pés descalços
Acaso ou destino
Carne e transcendência
Luz branca no começo do túnel
Céu azul no fim
Horizonte

Alguém aí já inventou
A inédita máquina de congelar
Momentos perfeitos?

26.7.11

Matinal

E se, por decreto
Aposta, convenção
Promessa ou o
Que o valha
As manhãs
Fossem gastas a se comer
Poesia

O pão seria folha
A manteiga, néctar
Leite, deleite
E o café seria café mesmo
(que, acima de tudo, é preciso viver)

Deixaríamos o jornal com as
Notícias frescas, quentes, ferventes
E ficaríamos com a pureza
Alternativa do noticiário dos
Sonhos, vindos da fornada
Louca da tipografia
Do ontem

E escalaríamos meias-verdades
Em busca da essência última
Gravatas trocadas por petecas
Esfregaríamos algodão doce
Nos mau-humorados
Isto se a poesia se comesse pela manhã

Viveríamos submersos na areia
Catando ondas, pulando siris
Rolaríamos na vitrola
Qual disco arranhado
E que diferença faz?
Poesia não é mesmo para incomodar?

Seríamos patrões de nós mesmos
E, pela manhã, nos demitiríamos
Para contratar um transeunte
Que não entenda nada disso
Para fazer o mesmo que não faríamos
Poesia é coçar-se
Com as unhas dentro dos nervos

E acreditar que não faríamos
Mais bobagens se ficássemos
Pela manhã, lendo poesia
Ingerindo non-sense
Desligar tudo que brilha
Deixar as pálpebras virarem as costas
Para o mundo que se acha tão sério...

Poesia não é refresco, não é bálsamo
É outra ferida
Que só se abre
Quando se está curado...

17.6.11

Vértice

Eu quero dizer uma coisa
E é só isto
Que eu vejo o mundo
De um jeito desconjuntado

E este conjunto
Depende de um apanhado
Que não dá prá fazer
Com outro modo de percepção:
É meu

E é por isto que
Ao ver tudo desta forma
O mundo verteu-se
Em único

E, apesar de não possuí-lo em nada
Vejo a mão que escreve e o (re)cria
Qual dentre nós é o outro que está no
Comando?

Vejo letras e frases e as faltas
E miro uma imensa disforme cordilheira
Quando se gira o texto para o lado esquerdo
Que é o lado do coração e do ridículo

(Vida em seus cardíacos abismos férteis)
Tento agarrar a palavra-ápice, culminante no ar
A mais doce e frágil dentre todas:
Ar

E também a frase mais baixa, sem verbos
E aí percebo, que, em todos os vértices
O que nos ajunta, permanentemente, é: ar
E respirar

O mundo é seu quando se o inspira
E deixa de sê-lo quando se o expulsa de si
Vértice: absurdos líquidos
Sublimados em matéria etérea

Pássaro rubro sobrevoa a cordilheira
Rosna imitando um cão: ígnea quimera
Um vulcão delirante empesteia
As tardes tranquilas do desencontro...

Por sermos sempre vértices
Por vezes, explodimos (ou implodimos)
Se fôssemos horizonte, vale, humus
Apenas respiraríamos...

Por isto, na vida e no texto,
As linhas, disfarçadamente invisíveis,
Aconchegantes, límpidas e plenas
Do silêncio

Que sucede o fim.