6.1.11

Simples assim...

(Em ritmo de bolero...)
Quando ela queria só um pequeno gole de água, suco ou refrigerante, costumava pedir: “só um dediquinho”.
Quando ele contava uma história de um negócio que não vingou dizia que a proposta tinha sido enjeitada.
Quando não sabia o nome do conector que juntava a mangueira à torneira, ela o apelidava de “penduricalho”.
Quando alguém havia sido trapaceado, ele dizia que era um engodo. Quando queria fazer rir, dizia que o dia estava escalafobético. E ninguém sabia que diabo era aquele.
Inventavam e recuperavam palavras: desassossegado, endiabrado, faniquito, rebentar, lambisgóia, penduricalho, dediquinho. Traziam troços do passado com seus desejos do futuro.  Remendavam tudo com Araldite e Durepoxi. Não se importavam com a tal da estética, pois casavam, os dois, muito bem. A la Super-bonder.
Ela tinha dores nas juntas, ele tinha dores nas costas e pressão alta.  Ela tomava um comprimidinho para diabetes e ele também.  Ela estava sempre com um bule cheio d’água à primeira boca do fogão esmaltado, esperando a visita que certamente chegaria lá pelas três, tão pontual quanto as chuvas de Belém. Ele fica esperando um neto passar correndo para acertar uma bengalada e perder o fôlego de tanto rir. 
Ele fazia truques no baralho e ganhava todas as partidas, para, na sequência, por distração e muito rejubilar-se, perder tudo novamente.  Ela guardava um livro de receitas de sua avó na gaveta da mesa, e era inacreditável que uma avó pudesse ter tido avó. Ele gostava de música caipira, daquelas de raiz, e dizia: “Eita pêga!”. Ela gostava de bolero e música antiga, bem antiga, lá dos começos das marchinhas e do hino do Uberaba Futebol Clube.  Mas ninguém nunca conseguiu achar uma gravação com o tal do hino e acabou que ela teve que ouvir a música na sua vitrola íntima, na sua cachola. E tinha um pedaço que nunca conseguia se lembrar ao certo... 
Ela era muito religiosa e lia a Bíblia Sagrada todos os dias, especialmente os Salmos e Eclesiastes.  Ele gostava era do Apocalipse para aterrorizar os netos e bisnetos e dizia que era tudo besteira.  Mas sempre que um dos seus filhos ia embora, pegar a estrada de noite, por exemplo, o velho dizia: “Vai com Deus, meu filho”.  No que acreditava, se é que acreditava, ninguém nunca soube.  Parece que passou a vida sem se preocupar muito com isto, mas tinha um quê em seu olhar, quando mirava a jabuticabeira carregada, que era de agradecimento a algo que o transcendia.  Só nesta hora, é certo, mas já bastava. Era o lado quintessenciado de uma pessoa mundana.
Quando recebiam visita, era como o jornal da tarde, com as notícias frescas e distorcidas da cidade pequena.  Notícias de gente simples que um dia viraria lenda ou menos que isto. E era o que interessava saber: fulano brigou com ciclano, beltrano voltou de viagem e abriu uma loja de calçados, parece que vão asfaltar aquela rua que vai até a Vila Mineira, o filho de Mariana começou a andar e já tomou um baita tombo.  Tudo em primeira mão.  Até que chegasse um outro um pouco mais tarde e, no calor do bate-boca e do balanga-beiço, desmentisse tudo ou acrescentasse uma pitadinha de noz-moscada que mudaria todo o curso da história. 
Preparar o lanche da tarde para gente de todas as partes que vinham contar coisas sem muita utilidade era, nela, o lado terreno de uma alma desapegada.
Depois a casa seguia a sua vida (naquela época toda casa tinha uma vida própria, impressa em suas paredes, porta-retratos e quintais): lá pelas seis era hora de botar todo mundo no banho e preparar o jantar.  Depois o jornal e a novela.  Reza para quem era de reza.  O velho fazia pipoca em dia de futebol.  
Dormiam e roncavam e se beliscavam durante a noite: vira prá lá, você tá roubando minha coberta, busca água para mim? Já está na hora de acordar? Ele ria e ficava vermelho e a cara cheia de veias e de rugas, uma paisagem lunar. Ela ria e escondia a boca e terminava quase sem ar: ai, ai...
As suas brincadeiras com palavras eram frutos de cinquenta anos na cozinha, e, por parte dele, quarenta anos no armazém de secos e molhados. E tempo lendo as pessoas e não os livros.  Nos livros as falas são mais certinhas que na vida real.  Eles se esbaldavam era com este lado desabonitado, escancarado das conversas do dia-a-dia.  Não usavam palavras de efeito mas comunicavam tudo: ela ao esconder o doce de leite para que ele conseguisse controlar o açúcar no sangue e ele ao encontrar o esconderijo e esbaldar-se, enquanto ela puxava uma palha após o almoço, para aliviar o peso nas varizes. 
Ela ao desrosquear a tampa da garrafa de café e servi-lo, ele ao namorar a carga vindoura de jabuticabas. 
Por incrível que pareça, não dançavam e nem sabiam como. Que tudo tem seus defeitos, não é mesmo? Mas, como para tudo dá-se um jeito, aqui vai um remendo com Araldite e Durepóxi, como o velho gostava de fazer, em ritmo de bolero:
Ela e ele, ele, ela, ela ele, eleela: eles.

8 comentários:

Anônimo disse...

Seu texto é belo, entretanto não acho que seja tão simples assim...para mim não foi...isso não quer dizer que não seja...
Um beijo saudoso
E.

Anônimo disse...

Quimera.

Anônimo disse...

Simples porque puro, livre de máscaras, jogos e ardis.
Simples porque brota naturalmente, sem esforços e estragemas.
Simples porque é a dança das afinidades.
Simples porque essência.
Simples porque amor.

Parabéns por mais um belo texto!

Anônimo disse...

Mas tu tá mesmo apaixonado, hein rapá?!!!

Hamer Palhares disse...

Simples assim quer dizer "natural assim" e não "fácil assim".
Os movimentos naturais são mais fáceis e descomplicados.

Hamer

Anônimo disse...

Hamer , linda história, parabéns, já pensou em publicar...?
.René

Anônimo disse...

o texto fala de pessoas conhecidas?

Luísa Duarte disse...

Hanner, bacana a história!
Muito bem escrita por sinal, me lembrou épocas da minha infância, da roça, do lampião... e recordo com satisfação!
Pena que nossa próxima geração, não entenderá o que é experienciar momentos como esse.

Abraços, Luísa