(Em ritmo de bolero...)
Quando ela queria só um pequeno gole de água, suco ou refrigerante, costumava pedir: “só um dediquinho”.
Quando ele contava uma história de um negócio que não vingou dizia que a proposta tinha sido enjeitada.
Quando não sabia o nome do conector que juntava a mangueira à torneira, ela o apelidava de “penduricalho”.
Quando alguém havia sido trapaceado, ele dizia que era um engodo. Quando queria fazer rir, dizia que o dia estava escalafobético. E ninguém sabia que diabo era aquele.
Inventavam e recuperavam palavras: desassossegado, endiabrado, faniquito, rebentar, lambisgóia, penduricalho, dediquinho. Traziam troços do passado com seus desejos do futuro. Remendavam tudo com Araldite e Durepoxi. Não se importavam com a tal da estética, pois casavam, os dois, muito bem. A la Super-bonder.
Ela tinha dores nas juntas, ele tinha dores nas costas e pressão alta. Ela tomava um comprimidinho para diabetes e ele também. Ela estava sempre com um bule cheio d’água à primeira boca do fogão esmaltado, esperando a visita que certamente chegaria lá pelas três, tão pontual quanto as chuvas de Belém. Ele fica esperando um neto passar correndo para acertar uma bengalada e perder o fôlego de tanto rir.
Ele fazia truques no baralho e ganhava todas as partidas, para, na sequência, por distração e muito rejubilar-se, perder tudo novamente. Ela guardava um livro de receitas de sua avó na gaveta da mesa, e era inacreditável que uma avó pudesse ter tido avó. Ele gostava de música caipira, daquelas de raiz, e dizia: “Eita pêga!”. Ela gostava de bolero e música antiga, bem antiga, lá dos começos das marchinhas e do hino do Uberaba Futebol Clube. Mas ninguém nunca conseguiu achar uma gravação com o tal do hino e acabou que ela teve que ouvir a música na sua vitrola íntima, na sua cachola. E tinha um pedaço que nunca conseguia se lembrar ao certo...
Ela era muito religiosa e lia a Bíblia Sagrada todos os dias, especialmente os Salmos e Eclesiastes. Ele gostava era do Apocalipse para aterrorizar os netos e bisnetos e dizia que era tudo besteira. Mas sempre que um dos seus filhos ia embora, pegar a estrada de noite, por exemplo, o velho dizia: “Vai com Deus, meu filho”. No que acreditava, se é que acreditava, ninguém nunca soube. Parece que passou a vida sem se preocupar muito com isto, mas tinha um quê em seu olhar, quando mirava a jabuticabeira carregada, que era de agradecimento a algo que o transcendia. Só nesta hora, é certo, mas já bastava. Era o lado quintessenciado de uma pessoa mundana.
Quando recebiam visita, era como o jornal da tarde, com as notícias frescas e distorcidas da cidade pequena. Notícias de gente simples que um dia viraria lenda ou menos que isto. E era o que interessava saber: fulano brigou com ciclano, beltrano voltou de viagem e abriu uma loja de calçados, parece que vão asfaltar aquela rua que vai até a Vila Mineira, o filho de Mariana começou a andar e já tomou um baita tombo. Tudo em primeira mão. Até que chegasse um outro um pouco mais tarde e, no calor do bate-boca e do balanga-beiço, desmentisse tudo ou acrescentasse uma pitadinha de noz-moscada que mudaria todo o curso da história.
Preparar o lanche da tarde para gente de todas as partes que vinham contar coisas sem muita utilidade era, nela, o lado terreno de uma alma desapegada.
Depois a casa seguia a sua vida (naquela época toda casa tinha uma vida própria, impressa em suas paredes, porta-retratos e quintais): lá pelas seis era hora de botar todo mundo no banho e preparar o jantar. Depois o jornal e a novela. Reza para quem era de reza. O velho fazia pipoca em dia de futebol.
Dormiam e roncavam e se beliscavam durante a noite: vira prá lá, você tá roubando minha coberta, busca água para mim? Já está na hora de acordar? Ele ria e ficava vermelho e a cara cheia de veias e de rugas, uma paisagem lunar. Ela ria e escondia a boca e terminava quase sem ar: ai, ai...
As suas brincadeiras com palavras eram frutos de cinquenta anos na cozinha, e, por parte dele, quarenta anos no armazém de secos e molhados. E tempo lendo as pessoas e não os livros. Nos livros as falas são mais certinhas que na vida real. Eles se esbaldavam era com este lado desabonitado, escancarado das conversas do dia-a-dia. Não usavam palavras de efeito mas comunicavam tudo: ela ao esconder o doce de leite para que ele conseguisse controlar o açúcar no sangue e ele ao encontrar o esconderijo e esbaldar-se, enquanto ela puxava uma palha após o almoço, para aliviar o peso nas varizes.
Ela ao desrosquear a tampa da garrafa de café e servi-lo, ele ao namorar a carga vindoura de jabuticabas.
Por incrível que pareça, não dançavam e nem sabiam como. Que tudo tem seus defeitos, não é mesmo? Mas, como para tudo dá-se um jeito, aqui vai um remendo com Araldite e Durepóxi, como o velho gostava de fazer, em ritmo de bolero:
Ela e ele, ele, ela, ela ele, eleela: eles.
8 comentários:
Seu texto é belo, entretanto não acho que seja tão simples assim...para mim não foi...isso não quer dizer que não seja...
Um beijo saudoso
E.
Quimera.
Simples porque puro, livre de máscaras, jogos e ardis.
Simples porque brota naturalmente, sem esforços e estragemas.
Simples porque é a dança das afinidades.
Simples porque essência.
Simples porque amor.
Parabéns por mais um belo texto!
Mas tu tá mesmo apaixonado, hein rapá?!!!
Simples assim quer dizer "natural assim" e não "fácil assim".
Os movimentos naturais são mais fáceis e descomplicados.
Hamer
Hamer , linda história, parabéns, já pensou em publicar...?
.René
o texto fala de pessoas conhecidas?
Hanner, bacana a história!
Muito bem escrita por sinal, me lembrou épocas da minha infância, da roça, do lampião... e recordo com satisfação!
Pena que nossa próxima geração, não entenderá o que é experienciar momentos como esse.
Abraços, Luísa
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