Eu vejo um roteiro onde um sujeito cresce na marginalidade. Preso, privado, negligenciado, esquecido, endurecido, molestado. Torna-se duro, distante, violento, emparedado, árido e ganha respeito. Especializa-se em fazer tudo de mal que lhe fizeram. Esquece como é que se faz para chorar e aprende a arrancar lágrimas de suas vítimas. Sem nenhum ponto de inflexão, um caminhar lento e retilíneo rumo ao abismo. Segurando ao colo o seu sobrinho de alguns meses, é de se questionar: será, este pequeno, mais um? Qual a diferença entre ser um número e ser uma pessoa?
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Eu vejo uma história de muitas histórias em uma grande cidade, e de amores quase impossíveis e paisagens humanas que eu nunca imaginei que um dia pudessem acontecer. Uma rede de inter-relações criadas pelo acaso dos gnomos que escondem umas pessoas das outras, que atrasam a abertura dos sinais verdes em um décimo de segundo e um cupido com a pontaria despreocupada e destreinada. Um escritor, uma prostituta, um casal de velhos, uma sonhadora. E se estivéssemos na feira onde o pintor encontra a sua musa? E se pudéssemos andar, à toa, em uma grande cidade, esperando o efeito dos gnomos, cupidos e do acaso brincarem com a nossa agenda? Por um dia apenas, não à rotina besta das horas e do desespero com o calendário. Por um dia apenas. E neste dia de preguiça e imprevisibilidade supremas, apenas observar o movimento da rua... E poder peguntar: Onde é que isto tudo vai dar?
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Eu vejo um músico primoroso em seus passos de dançarino. Seus movimentos mínimos, calculadíssimos e a piração de seus fãs. Um treinamento rumo à perfeição. Mas, e é aí que reside a grande merda, não somos - nem teria como ser - perfeitos. E aí fica faltando um tanto e fica sobrando outro tanto. E a conta não fecha. E no meio disto tudo, vem um regurgitar de artificialidade e de arrogância. Mas depois vem a música e a dança e, de novo, sob seu efeito estupefaciante, somos levados a mergulhar na beleza, força motriz dos lunáticos e crédulos. Eles precisam de esperança, nos adverte o compositor. E é isso que quer nos dar ou vender. Daí que é preciso tamanha pirotecnia. Antes era mais simples? Sei não... Depois será mais fácil? Desconfio. Puríssima chuva de fogos de artifícios, micro-momento de supremo êxtase, fumaça fugaz sobre o café expresso, um lance do olhar e o arremessar do chapéu do bailarino: só o agora existe?
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Eu vejo uma mulher em seus dias de fragilidade contorcer-se e enrodilhar-se como faz um gato maroto. E acompanhar um tanto de cenas de sonhos, de traillers de cinema, de projetos. E desconfiar e acreditar. E tecer juízos sobre as coisas do dia-a-dia. E ter medo, e se assustar. E depois, escândalo que é o mundo, rir-se a quase perder o fôlego ao ver um sujeito cair de uma cadeira que se parte em dois. E de pensar em como serão os próximos tempos - que o tempo, hoje em dia, tem corrido ainda mais rápido que antigamente. Ela é suas sensações e isto é mais importante que a realidade, ainda que os fatos provem o contrário. Os fatos, ninguém, o escambau, podem provar o que vai dentro dela. À mercê dos novos tempos, como se todo tempo pudesse ser mais que a mesmíssima coisa de sempre - renovação. Olha o próximo calendário como quem espera o escurecer da sala do cinema e sente o sangue fervilhar nas artérias ante o imprevisível. Lança sua sutilíssima flecha: E você, o que vê? Seu veneno é tênue porém contínuo e é impossível não adormecer. E acordar só bem mais adiante, muito distante, naquilo que a poeira a bailar - luminosa sob o regaço da chamas da manhã - tenta convencer ser, finalmente, um novo dia. Ou mais um dia de fragilidade.
Um comentário:
" Eu acho que a expressão 'sexo frágil' foi criada por alguma mulher para desarmar o homem que ela estava se preparando para subjugar."
do gênio ogden nash, na grande obra que nasceu clássica, " Por que os homens amam as mulheres poderosas", de Sherry Argov.
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