6.1.11

Dias de Fragilidade

Eu vejo um roteiro onde um sujeito cresce na marginalidade. Preso, privado, negligenciado, esquecido, endurecido, molestado.  Torna-se duro, distante, violento, emparedado, árido e ganha respeito.  Especializa-se em  fazer tudo de mal que lhe fizeram.  Esquece como é que se faz para chorar e aprende a arrancar lágrimas de suas vítimas.  Sem nenhum ponto de inflexão, um caminhar lento e retilíneo rumo ao abismo.  Segurando ao colo o seu sobrinho de alguns meses, é de se questionar: será, este pequeno, mais um?  Qual a diferença entre ser um número e ser uma pessoa?
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Eu vejo uma história de muitas histórias em uma grande cidade, e de amores quase impossíveis e paisagens humanas que eu nunca imaginei que um dia pudessem acontecer.  Uma rede de inter-relações criadas pelo acaso dos gnomos que escondem umas pessoas das outras, que atrasam a abertura dos sinais verdes em um décimo de segundo e um cupido com a pontaria despreocupada e destreinada.  Um escritor, uma prostituta, um casal de velhos, uma sonhadora.  E se estivéssemos na feira onde o pintor encontra a sua musa?  E se pudéssemos andar, à toa, em uma grande cidade, esperando o efeito dos gnomos, cupidos e do acaso brincarem com a nossa agenda?  Por um dia apenas, não à rotina besta das horas e do desespero com o calendário.  Por um dia apenas.  E neste dia de preguiça e imprevisibilidade supremas, apenas observar o movimento da rua... E poder peguntar: Onde é que isto tudo vai dar?
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Eu vejo um músico primoroso em seus passos de dançarino. Seus movimentos mínimos, calculadíssimos e a piração de seus fãs.  Um treinamento rumo à perfeição.  Mas, e é aí que reside a grande merda, não somos - nem teria como ser - perfeitos.  E aí fica faltando um tanto e fica sobrando outro tanto.  E a conta não fecha.  E no meio disto tudo, vem um regurgitar de artificialidade e de arrogância.  Mas depois vem a música e a dança e, de novo, sob seu efeito estupefaciante, somos levados a mergulhar na beleza, força motriz dos lunáticos e crédulos.  Eles precisam de esperança, nos adverte o compositor.  E é isso que quer nos dar ou vender.  Daí que é preciso tamanha pirotecnia.  Antes era mais simples?  Sei não... Depois será mais fácil?  Desconfio.   Puríssima chuva de fogos de artifícios, micro-momento de supremo êxtase, fumaça fugaz sobre o café expresso, um lance do olhar e o arremessar do chapéu do bailarino: só o agora existe?
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Eu vejo uma mulher em seus dias de fragilidade contorcer-se e enrodilhar-se como faz um gato maroto. E acompanhar um tanto de cenas de sonhos, de traillers de cinema, de projetos.    E desconfiar e acreditar. E tecer juízos sobre as coisas do dia-a-dia. E ter medo, e se assustar.  E depois, escândalo que é o mundo, rir-se a quase perder o fôlego ao ver um sujeito cair de uma cadeira que se parte em dois. E de pensar em como serão os próximos tempos - que o tempo, hoje em dia, tem corrido ainda mais rápido que antigamente.   Ela é suas sensações e isto é mais importante que a realidade, ainda que os fatos provem o contrário. Os fatos, ninguém, o escambau, podem provar o que vai dentro dela. À mercê dos novos tempos, como se todo tempo pudesse ser mais que a mesmíssima coisa de sempre - renovação. Olha o próximo calendário como quem espera o escurecer da sala do cinema e sente o sangue fervilhar nas artérias ante o imprevisível.  Lança sua sutilíssima flecha:  E você, o que vê? Seu veneno é tênue porém contínuo e é impossível não adormecer. E acordar só bem mais adiante, muito distante, naquilo que a poeira a bailar - luminosa sob o regaço da chamas da manhã - tenta convencer ser, finalmente, um novo dia. Ou mais um dia de fragilidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

" Eu acho que a expressão 'sexo frágil' foi criada por alguma mulher para desarmar o homem que ela estava se preparando para subjugar."

do gênio ogden nash, na grande obra que nasceu clássica, " Por que os homens amam as mulheres poderosas", de Sherry Argov.