6.4.11

50

(Para Yone)

E aí então você se depara com ele - o momento do fantástico.  Não há alarme, não há sinal, raramente uma intuição.  No mais das vezes, só a dúvida.  A dúvida de que seja isto mesmo, a dúvida de que esteja acontecendo.  A desconfiança, grau mais profundo da incerteza.  
E ocorre de repente.  Na vida é assim: não tem replay, não tem árbitro. Só há o correr, raramente a bola.  Gol, então, só de quarta e domingo.  Mas a gente entra em campo a toda hora. Se é que um dia sai dele...
E aí então você repara que foi.  E como foi.  Um lapso de criatividade e, pronto, você chega lá.  Mas tem dias que este incenso não acende, e fica o vácuo do aroma que deveria ter vindo.  Tem semanas que o pão não cresce e que o tempo não deixa nada acontecer.  Acontecer como deveria.  E você acha que sabe como as coisas deveriam ser.  Hahahaha! Não tem dias que você tem vontade de rir de você mesmo?  Eu tenho.
E aí então você pára e vê que não era nada disto.  Mas já é tarde, já é cedo e é outro dia.  Ontem já passou, você só vive no hoje, mas insiste em viver em vários dias ao mesmo tempo.  Para isto recruta suas lembranças e suas preocupações e espraia sua vivência do hoje em horizontes alargados e rebatidos de tempo.  Você não sabe o que é o tempo e ninguém pode dizer o que seja.  Fora as discussões que nunca ninguém entendeu... 
E aí você lembra que, quiçá daqui a uma semana, ele apareça de novo - o rasgo do imprevisível, inacreditável. E começa a contar as horas. E fica de espreita, escondido atrás da caçamba do disque-entulho.  E, súbito, ele chega.  Ele ou, pior ainda, a camisa de força.
E aí então você percebe que tenta novos começos.  E aí então, já foi.  E aí então... E aí então... Mas não adianta, ela não vem.  Ela é astuta e escorregadia, a tal da criatividade.  Não está onde você procura, nunca.  Se você acende o forno, ela já estava debaixo da mesa, se busca a Bíblia ela se revela atéia.  Se liga um programa na TV ela queima uma estação de retransmissão de energia.  A criatividade é uma gota límpida e fluida, menor que o rendilhado de sua peneira.  
E aí então você é enfeitiçado pelo momento derradeiro, aquele ápice de revelação que ocorre entre a vida e a morte.  E você percebe que sempre esteve entre a vida e a morte, que é o único lugar que se existe para viver.  A novidade única é a revelação disto tudo.  
E você pensa que estão te filmando, que alguém quer te sacanear, que o mundo está para acabar, que algo ruim vai acontecer.  E depois pensa que é tudo bobagem e toma um chá de camomila e escuta uma música dos anos 30. Do século passado ou deste, tanto faz. Em que século estamos mesmo? Não é tudo uma questão de referencial?
E você começa a olhar para o texto e começa a achar tudo muito louco e não vê sentido algum.  E pensa: será que eu me distraí e não entendi um significado oculto qualquer que daria sentido a isto tudo?  E aí relê e vê que não, não tinha significado oculto algum. “Uma joça!!  Pode ser que tenha e eu não tenha percebido.”  E vai para o começo e volta para o meio, esmiuça as palavras até chegar ao final.  E pensa que seria bom se você pudesse fazer o mesmo com a sua vida.  Mas ela precisaria estar no papel e não está.  Ou talvez esteja, só que você não sabe onde é que esqueceu o tal do livro.  Se é que alguma vez já chegou perto dele. Mas chega a sua vez e você encontra o livro: “que raio de idioma é este?!?!”
E aí então você percebe que coisa engraçada e fantástica é poder ter consciência das coisas que acontecem com você e que você se dê conta de acompanhar os seus pensamentos e até rir-se deles.  
E que possa ler e encontrar surpresa em cada uma das palavras ou delas debochar.  E que está tudo com você - a decisão de se encantar com ou de ridicularizar um texto, um rango de um botequim meia-boca, um momento de epifania. Enternecer-se, fazer brotar uma lágrima, acender um busca-pé, e até aquela postura esquisita de yoga. Tudo, exatamente tudo! Ou tudo menos a tal postura... 
E se você pudesse fazer isto com o mundo à sua volta?  Mas será que pode?  Será que resistiu à tentação de entrevar-se, que é o jeito mais confortável de se viver os dias de hoje?  
E aí então percebe que ter consciência de si mesmo é um passo além daquilo que conseguem os animais, que também percebem a si mesmos - o espaço físico de seus corpos, suas sensações básicas de fome, dor, medo, sono.  Mas não sabem dar nome a isto. E de que adianta dar nomes?  E se os nomes estiverem errados?
E se você percebesse que faz parte de um organismo maior?  Que você é, noves fora zero, não um ser, mas uma célula?  E se você percebesse que o que ocorre com cada uma das células pode afetar o seu ser celular?  E que o seu ser não é seu, mas sim deste organismo maior?  
E se, neste arroubo inefável do absurdo, resistisse à pressão mundana para se controlar e tornar a acreditar que você não é o todo, mas é - tão-somente - você.  E sendo só você, deve voltar a fazer o que fazem os viventes: comprar, sonhar, votar, reproduzir-se, automatizar-se, anular-se... E o fundamental: esquecer, esquecer, esquecer... Ou seria outra coisa?
E aí então eu lhe convido a deixar de bobagem e a não levar nada disto a sério.  Logo será o começo do mês, nada importante vai acontecer.  Um monte de compromissos lhe chamam para a realidade e é lá que as coisas estão.  E se não estiverem, que diferença faz?  
E, finalmente, se faz qualquer diferença, provavelmente não fará daqui a cincoenta anos.  E eu já nem sei se se escreve cincoenta ou cinqüenta. E é disto que este texto trata, exclusivamente. Por isto, melhor grafar assim: 50. Esta é uma questão mais importante do que tudo o que você leu.  
Venha, volte a dormir: já está na hora de acordar....

3 comentários:

Fernanda disse...

Estava realmente precisando ler um texto deste conteúdo...você é ótimo!!!

Anônimo disse...

Doutor, fechou o blog?

Hamer Palhares disse...

Fechei nada, Anônimo!
Logo mais publico mais um.
Abraço,

Hamer