Era manhã cedinho. Aquela hora que é de chegada para uns e de acordar para outros. Os primeiros garis começavam sua rotina. Os boêmios pediam a saideira, e diziam que desta vez era de fato.
Barbeou-se, buscou o pão, esquentou o leite, espreguiçou-se, tentou tomar Sol para acordar, mas o Sol estava encoberto. Abriu a janela e fechou a cortina para deixá-lo entrar de modo explícito. Esquentou um pouquinho da manteiga e levou ao fogo a tampa do mel para que conseguisse abri-lo. Adiou um bocado a cata do jornal, contentou-se com as notícias de ontem, no escanteio de sua visão.
Barbeou-se, buscou o pão, esquentou o leite, espreguiçou-se, tentou tomar Sol para acordar, mas o Sol estava encoberto. Abriu a janela e fechou a cortina para deixá-lo entrar de modo explícito. Esquentou um pouquinho da manteiga e levou ao fogo a tampa do mel para que conseguisse abri-lo. Adiou um bocado a cata do jornal, contentou-se com as notícias de ontem, no escanteio de sua visão.
Lavou as louças depois que todos partiram para seus compromissos diários. Sentou-se em sua poltrona de leitura e ficou impressionado que houvesse passarinhos cantando naquela hora, naquele lugar. Cogitou: ou eles sempre estiveram aqui ou alguma coisa está mudando... Tentou recordar-se do seu sonho, serviu-se de um lápis de ponta romba e uma caderneta de recados, rabiscou algumas palavras mas não conseguiu recobrá-lo por completo.
Abriu a caixa de e-mails e uma das mensagens dizia: um convite especial. Por várias vezes tinha visto aquela mesma mensagem, mas desta vez lhe soara diferente. Simplesmente por tê-la visto pelo avesso e imaginado que mais uma rede social não lhe tornaria mais feliz, talvez pelo contrário. O que as pessoas buscavam com a velocidade de informação daqueles tempos fluidos? Estarem conectadas, por certo. Mas conectadas a quê?!?
Ficou pensando que a dificuldade de recordar dos seus próprios sonhos fosse um sintoma de algum mal-estar. Provavelmente, um mal-estar coletivo. Por isto adotou uma rotina mais salutar e buscava uma normalidade. Mas o que seria a tal normalidade? Certamente, não a estatística. Não queria a consciência de rebanho tão em moda nos dias acelerados em que vivia. Para isto era preciso força e nobreza para recusar convites. O que nos faz aceitar tantos convites nestes dias, ponderou, é o orgulho. Misturado à falta de tempo de considerar nosso próprio orgulho.
Mas o que os sonhos teriam a ver com isto tudo? Cogitou que a velocidade das conexões e dos deveres de hoje em dia, pura falácia do desenvolvimento tecnológico a nos garantir cada vez mais tempo - para o trabalho ordinário, diga-se, e não de descanso ou reflexão - nos tornaria progressivamente mais distanciados dos núcleos fundantes do nosso oráculo pessoal, aquela parte não invadida por propagandas de outdoors, anúncios on-line e propostas envoltas em certa preciosidade equivocada.
Nas fábulas celtas, o convite para a aventura do herói acontece, muitas vezes, no ato de seguir um pequeno animal para dentro da floresta. O herói é o sujeito que assume para si a aventura do desconhecido, do escondido em si. Geralmente em espaço inconsciente ou inexplorado. É isto o que os sonhos proporcionam, um mapa medieval de rotas, tesouros e aventuras.
Carecemos de heróis? A ultra-conectividade nos faz pensar que não, já que nos tornamos uma só malha pensante em tempo real. Herói para quê? Siga seu ídolo no twitter, é bem menos arriscado. E então, com o tempo, via banalização e trivialização, não teremos mais a quem seguir.
Mas como dizia Italo Calvino, metaforizando o ato de pensar e o poder criativo, espaço mítico de exercício dos heróis, quando se trata de velocidade, um puro-sangue corre mais que cem mangas-largas.
Parou de refletir e mastigou o jornal, deixou-se contaminar novamente por fotos do futebol, do caderno policial e por gráficos das previsões econômicas. Precisava manter-se informado, era como organizar suas armas para a caçada diária. Seus monstros internos o estariam esperando, ao cair da noite, para saber o que encontrara na selva lá de fora. A de dentro o aguardaria, inexplorada, intocada, até o momento em que fosse tarde, bem tarde, irremediavelmente tarde...
Percebeu que os passarinhos haviam cessado sua cantoria e foi-se embora, um personagem engolido pelo enfumaçado da imaginação. Em seu último respiro, lançou seu torpedo: “Sonhar?! Para quê?!? Descubra... Este é o convite especial.”
Um comentário:
Amigo, adorei ter postado o texto do contrário do amor. Ele é um convite especial a voltar a sonhar. Parecem dois textos complementares, independentes, mas complementares. Estou precisando mesmo sonhar mais. Beijos
Yone
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