16.11.10

O Contrário do Amor

Há um poder incendiário em algumas discussões.  Mesmo em reuniões de amigos, mesmo sob o poder de um bom vinho.  Ou especialmente por tudo isto.  Veridiana foi quem deu o pontapé inicial: o que vocês acham que é o contrário do amor?  Mas por quê perder tempo com isto? Vamos beber vinho e deixa isso prá lá, deixa rolar, sugeriu Valdir.  Tudo bem, vamos lá, mas porque não discutimos o que é o amor e não o seu contrário?  Ora, alguém aqui ainda não sofreu por amor ou não se sentiu mais vivo por sua causa?  Acho que não é preciso defini-lo, já o seu avesso é que me intriga... Justificou-se Veri. Eu acho que o oposto do amor é o ódio, a raiva, o cinismo, começou, desinteressadamente, Bruna, arquiteta, e a mais desencanada do grupo.  Claro que não, o ódio te mantém tão ligado quanto o amor, acho que só isto é capaz de te fazer perder tantas noites de sono quanto amar, retrucou Ricardo. É difícil odiar mesmo quem não tenha sido ou seja alvo de nosso amor, de nossas preocupações...

Não queriam, mas já tinham mergulhado no embate.  A temperatura emocional estava dada, ninguém mais se tocava, para não transparecer o suor nas mãos... Será que, naquela noite, experimentariam o amor ou o seu oposto?

Luiz, que acabara de chegar, encheu sua taça, apanhou algumas castanhas e, solene, lançou: eu tenho a impressão de que talvez tenhamos que delimitar melhor o que estamos entendendo por amor.  Tá incluso aí a paixão? Conta também o amor mãe-filho, o amor entre amigos?  Não, estamos falando do amor entre enamorados, en-amor-ados! frisou Veridiana, que, dali em diante, passou a se sentir a dona do fórum... Veridiana era o primeiro raio de luz do dia, era uma brincadeira de moleque com bola de gude, não havia como não amá-la, a não ser o fato de que, no momento, sofria por se sentir abandonada...

Se a gente pensar bem, será que existe um contrário de amor?  Por exemplo, eu sei o que é o contrário de fome, é a saciedade, argumentou Luana.  Para quê serve saber o que é o contrário do amor?!? Veri emendou: É que eu tô na pilha de saber como escapar disso, não perceberam?  Talvez seja um jeito, pensar em quê fazer para me ver livre deste sofrimento, é um trem que fica apertando aqui, parece uma pata de elefante!  Eu sei, Veri, disse Luana, mas será que não é melhor tentar esquecer?  Como?! Tentar esquecer só vai me fazer pensar mais, é como você me pedir para não pensar num saco de leite e a única coisa que me vem a cabeça é o tal do leite!  Acho que temos que pensar sim, emendou Luiz.  E acho a discussão muito boa, apesar de pensar que os gregos já falaram tudo sobre o amor... Talvez o contrário do amor seja a cisão, a divisão, o não poder estar integrado, inteiro.  Mas, mesmo assim, ainda vejo que o amor está até nesta ruptura, como um gato que perdeu cinco ou seis de suas sete vidas e vai cambaleante... Luana concordou e pensou com seus botões: "Este Luiz também é um gato... quantas vidas será que ele ainda tem?"

Bruna, que voltava da cozinha com os pratos para arrumar a mesa, retrucou: mas o amor suporta as rupturas, tanto enquanto o relacionamento está vivo como quando o seu fim é decretado, que também amor não respeita decretos, não é verdade? Isto bem é verdade, posicionou-se Valdir, meu pai mesmo dizia que o coração é terra de ninguém e que o amor é uma areia movediça, quanto mais se tenta fugir dele mais ele se nos gruda e nos deixa impregnados... Que bonito isto, Valdir, preciso conhecer seu pai! Falou Bruna e, durante o tempo das gargalhadas serviram-se e prepararam um novo round de escavações.

Eu também já sofri pácas com estes términos, eu sei como é, Veri, pode ficar tranquila que você não está sozinha nesta, disse Luiz.  Eu acho que o contrário do amor, que é muito mais distante dele que o ódio ou o cinismo, é a indiferença, que é, por assim dizer, um total descaso com aquele que foi objeto de seu amor.  Não, claro que não! Exaltou-se Ricardo, professor de letras e leitor de Shakespeare:  a indiferença é uma cobra ávida com o bote armado...  A indiferença é um sentimento outro revestido de um cobertor de neutralidade, ou é um grande despeito que tenta se adornar com um véu reluzente de metais nobres e pedras preciosas.  Certamente que a indiferença não é o contrário de nada, a não ser do interesse, e o interesse é um grau mínimo do amor, não a sua plenitude.  Eu sempre fico desconfiado quando alguém me parece indiferente, parece que há um grau de simulação, algo teatral no mal sentido... Luana não sabia se concordava, a discussão ganhava traços revoltos quando decidiu acender um cigarro ao lado da janela: Sei não, parece que há um outro grau - ainda mais tenebroso - de indiferença, como um deserto, ou ainda mais árido que isto, que para mim não é mais o amor... Tá, pode até ser, mas é a preparação para o amor, ao menos outro amor, não seu oposto.   Touché! Sorriu Ricardo.

Vamos abrir outra garrafa?  Tá, tudo bem, mas estamos fazendo exatamente o contrário do que nos ensinaram os gregos... Que gregos?!  Deixa este povo prá lá, eu só quero é ser feliz!  As falas começaram a se embaralhar e, em certo ponto, era pouco importante quem dizia o quê.  Mas então, Luiz, que era o mais experiente, pai de quatro filhos, vindo do término de seu terceiro casamento, patati, patatá, levantou outra lebre: eu fiquei aqui pensando, ouvindo vocês falarem, e acho que o contrário do amor é o desprendimento, não a indiferença ou o desapego. O desapego é até importante, uma condição sine qua non, como um saca-rolhas que nos liberte do egoísmo e do ceticismo, para experimentar o próprio amor em seu ápice e resplendor.  Desprender-se é outra coisa, é estar liberto...  Mas como?! Então amar não é estar liberto?!?  Então para quê serve a liberdade?! Alvoroçou-se Veridiana, do alto de sua meia garrafa de Pinot Noir. Luiz se desconcertou, como um moleque pego roubando um bom-bocado: É, é verdade, você tem razão, amar também inclui liberdade, ainda que, por outro lado, e você tem que dar o braço a torcer, haja um grau de liberdade que fique empenhado no cultivo do amor.  Então, sei lá, acho que não há um contrário do amor, rendeu-se Luiz.

É, mas eu acho que tem sim...  Todos, já incrédulos, deixaram uma pontinha de seu apetite para aquelas palavras insinuantes de Veridiana.  Talvez ela já guardasse esta fala desde o começo da conversa, pensaram alguns dos presentes... Mas Veridiana sabia que aquilo era algo novo, uma fresta que se abria apenas naquele milésimo de segundo, o impossível feito realidade...

Estivemos até aqui, pensando apenas do ponto de vista da qualidade do que é o amor.   Mas existe outro modo de refletir, olhem só: se pensássemos no contrário da sabedoria, seríamos logo forçados a pensar na ignorância, mas como pode a ignorância contrapor-se à sabedoria? Talvez o seu contrário, aquilo que a antagonize, seja, afinal, uma sabedoria ainda mais intensa e que a supere. Não parece? Também acho que, no caso do amor, há também uma quantidade e uma potência intrínseca, uma energia, vamos colocar desta forma... E esta energia não pode ser detida, ultrapassada ou enfrentada por nenhuma outra, que não seja o próprio amor. Simplesmente por que nada pode suplantar o manancial de vida que há no amor, ainda que vários elementos possam temperá-lo... Como este vinho que estamos tomando: tem algo que amarra, tem algo complexo, algo doce e um gosto que fica na boca, mesmo depois que nos esquecemos dele... Daí que eu acho que o contrário do amor, ainda que inveja, dor, ciúmes, rotina, indiferença, desprendimento ou o que lá que vocês quiserem façam dele parte ou o combatam, o inverso dele, só pode ser, ele mesmo, o amor.  Como uma moeda que tenha dois versos iguais.  Daí que tantos digam que contra males de amor, só um outro amor, só o mesmo amor, só mais amor.   De preferência, em dobro!

Riram-se todos. Nesta hora se sentiu, ela mesma, Veridiana, tocada por suas palavras, como se tivesse acessado algo além de sua percepção corriqueira.  O vinho havia acabado enquanto Yone preparava o café, que era um jeito de botar fim naquela prosa, que tinha um sei lá o quê de desconfortável, um agridoce que precisava de um aroma bem conhecido para se lhe sobrepujar, ou melhor, para amenizar...  Pessoal, eu não sei qual o contrário desta birosca que vocês estão aí falando, mas posso garantir que este café foi feito com muito, mas muito amor.  Alguém aceita?

 Naquela noite, por excesso de café - ou muito pelo contrário - ninguém dormiu...

5 comentários:

Anônimo disse...

Lindo demais!

Yone disse...

Amigo, adorei ter postado o texto do contrário do amor. Ele é um convite especial a voltar a sonhar. Parecem dois textos complementares, independentes, mas complementares. Estou precisando mesmo sonhar mais. Beijos

Yone

Anônimo disse...

Ei Hamer!
Achei uma discussão curiosa. Me lembrou uma crônica do Rubem Alves - "ATÉ QUE A MORTE". Dê uma conferida depois.
Grande Abraço!
Daniel Sócrates

Hamer Palhares disse...

Olá, Daniel

Vou conferir. Obrigado pela dica!
Abç,

Hamer

Menezes disse...

Hamer

Assim como funeral não é contrário de festa (em alemão, aliás, chama-se ‘festa da tristeza’ ,Trauerfest) não creio que ódio seja contrário de amor, ou que substantivo em geral tenha contrário. Mas vale lembrar que amor ao contrario é Roma...

Abraço

Menezes