5.11.10

Quando eu morri












Quando eu morri vieram com este papo de que queriam me cremar ao invés de enterrar e eu fiquei constrangido pois não tinha idéia do que era melhor para mim e, logo adiante, percebi que não tinha como me expressar.  Mas quando eu morri eu percebi que o que importava, de fato, era o que fosse melhor para eles e não para mim.

Quando eu morri, ouvi as pessoas comentando sobre que fim dar a meus pertences.  Uma sobrinha queria ficar com meu violão e eu achei acertado.  Um dos meus filhos achou melhor não decidir nada e que, para ele, qualquer lembrancinha bastava.  Meus pertences não eram meus e, atarantado, compreendi que nunca o foram.  Levava comigo só meu marca-passo e uma roupa que eu gostava há muito tempo.  Mesmo o que era mais meu seria queimado.  Um dos meus pertences que me desfiz com mais prazer foi o medo da dor.  E o medo do prazer.  E o medo, em suma.  Este, ninguém quis ficar com ele, pois que cada um já tinha o seu, até em demasia.
Quando eu morri, fiquei com receio de vagar por aí.  Mas eu já tinha este receio bem antes.  A minha cisma é que não me serviriam um pão de queijo e chá com leite e eu não teria mais como demonstrar meu cuidado por todos os que me foram tão caros.  Tentei fazer um balanço da minha vida e não conseguia.  Pensei que, quiçá, devesse ter buscado mais iluminação espiritual e menos bens materiais, mas achei que isto era um jargão.  Tive as luzes que me foram dadas durante uma vida e, por ora, as julgava suficientes.  Elas tinham um brilho baço mas estavam cá, comigo. 
Quando eu morri, pensei: e agora?!  E então me sobreveio algo familiar, pois quando eu estava vivo, quantas vezes não me questionei:  e agora?!  Foi aí que percebi que agora é um castelinho de cartas que se constrói na ventania.  E agora eu queria brincar de Lego, de colorir, de massinha de modelar.  Mas o querer já era outro: era uma imagem em negativo do querer, até difícil de explicar, só quando você viver entenderá. Mas talvez não, porque eu não sei como vai ser a sua vez...
Quando eu morri, não pude cumprir alguns deveres pequenos do cotidiano.  Não busquei o jornal atirado na varanda de casa, não fui à padaria, não tirei o lixo da cozinha e não coloquei a água no bule para fazer café.  Percebi quanta poesia havia em cada uma destas micro-missões diárias e disto, sim, senti falta.  Queria poder ler o jornal e gargalhar à larga com qualquer notícia, como quem diz: "vocês é que se virem, agora!"  Qual o quê?  Como fazê-lo se eu não conseguia mais sentir raiva?  Quando se morre, todos os sentimentos são substituídos por um simulacro descarnado do mesmo sentimento.  E é como se ele não estivesse acontecendo, mas ele está lá.  É um negócio meio doido este de partir.
Quando eu morri, cogitei: putz, por que cargas d'água eu não sabia de tudo desde o princípio?  Quem é que montou esta engenhoca?  Qual a lógica nisto tudo?  Mas então lembrei-me que esta palavra, lógica, é uma invenção, uma quimera.  Mais perigosa que uma moto-serra.  E aí vi, mesmo naquele estado, que eu continuava não sabendo de nada. A pulga atrás da orelha deve ter me perseguido mesmo aqui...  Seria uma espécie de anjo-da-guarda?  
Quando eu morri, parei de escrever.  Parei de trabalhar. Parei de respirar. Parei de sentir pena. Não mais me arrependi.  Não paguei mais o IR. Deixei de ir ao dentista. Perdi quatro ingressos para o circo e senti uma falta danada dos palhaços daí do mundo. Não pude conferir um bilhete da loteria. Parei de fumar e beber. Não critiquei mais ninguém.  Ter morrido foi a maior realização que tinha feito até o momento. Quase tudo se encaixava e eu via sentidos ocultos se alinhando duma só talagada. Ao que me recorde, a única coisa que não foi realização da época em que eu me fui de vez foram estes escritos e...  todo o afeto trocado em uma curtíssima existência.
Quando eu morri, e eu já tinha percebido que estava morto, contudo, colocaram alguns canos e sondas no meu corpo e eu já sabia que não iria dar mais em nada.  E fiquei pasmo quando percebi que aquele não era mais meu corpo, era outra coisa da qual eu custava a me des-identificar.  Quando eu morri era um dia ensolarado e a luz entrava pela porta de vidro e pela janela formando arco-íris mínimos, mas ninguém pôde perceber.  Os arco-íris também não são de ninguém.

4 comentários:

Anônimo disse...

Hamer querido,
Obrigada por me enviar seus textos. São tocantes e inspiradores. Parabéns! Quando eu crescer, quero ser
como vc. "Não permita Deus que eu morra sem realizar esse sonho".
bjs
Vânia

Unknown disse...

Meu amigo e filho Hamer.
Você conseguiu! Fez parecer essa passagem inevitável e às vezes desejável, tão natural que se perde o medo.
Mas o melhor é supor que, mesmo mortos, podemos nos surpreeder.
Um beijo no seu coração e um abraço na sua alma, que diga-se nunca foi pequena e por isso vale a pena conhece-lo.
Tellesprof

Unknown disse...

Realismo fantastico, excelente texto Maxwell´s "Golden" Hammer.O mais incrivel de td isto é que estou terminando nesse instante uma musica do meu Cd chamada
"Before you Die"e fala d todas as coisas que deveriamos fazer antes de morrer....fiquei congelado...lógico,é a temperatura normal de qq morto....

Forte Abraço

Danny

Anônimo disse...

É Hamer,

Parece que você, além de saber escrever, sabe tambem o momento !!!!

Beijos
Felicia