18.10.10

Três lições

(Em homenagem ao dia dos médicos)

Já faz quinze anos. Ou quase isto. Não é tanto tempo assim.  Era um período de intenso aprendizado, tanto técnico quanto emocional.  Algumas lições, no entanto, tiveram um impacto ainda mais duradouro que outras, também fundantes do que seria a minha prática diária como médico psiquiatra. Recordo-as hoje, dia do médico, em homenagem a todos os colegas médicos e em deferência à minha sorte por ter me colocado neste laborioso e instigante rumo.   
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Lembro-me de uma das primeiras entrevistas, no início da residência médica, com um jovem que apresentava o primeiro quadro esquizofrênico em sua vida. Éramos dois iniciantes. Para mim era uma surpresa trabalhar com uma doença mental tão grave e encará-la como tal.  Qual a diferença entre tantos tipos de descompensações que já havia conhecido em minha vida anterior, tanto como ser vivente quanto como médico e aquele quadro bizarro de sofrimento tão escancarado e intenso?
Após colher uma acurada história clínica, contactando tanto o enfermo quanto familiares, preparei o caso com esmero para levar à reunião clínica mais importante do departamento de psiquiatra da minha escola médica.  Após apresentar todo o histórico, bem como o exame do estado mental e físico, hipóteses diagnósticas, o Professor Titular da cadeira me perguntou: “E qual é o tratamento?”, ao que respondi prontamente com o nome do medicamento antipsicótico mais recente, cuja propaganda impregnara na mente de dez em cada dez residentes de saúde mental.  
Ele, por sua vez, balançou a cabeça como que se concordasse parcialmente com minha fala e complementou: “É, pode ser com este remédio, pode ser com aquele ou aquele outro, isto vai depender da resposta que o paciente apresentará ao medicamento e que teremos que observar na prática.  O mais importante agora não é isto.  O mais importante é saber em que este menino difere de todos os outros pacientes com o mesmo quadro que conhecemos, ou seja, o que ele tem de próprio, seus potenciais recursos e problemáticas. Quem é ele? E também orientar a família sobre a doença e sobre o prognóstico, tanto se receber tratamento quanto se o tratamento for negligenciado...”
Aquela intervenção ficou-me muito marcada, uma vez que balanceava, ao menos em parte, a importância tida como capital da indústria farmacológica - sem negar sua fundamental papel - em achar respostas definitivas para os dramas existenciais e para as aflições do ser humano e mesmo para doenças graves como a esquizofrenia.
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Outra lição:  Era um dos últimos dias de residência.  Eu acompanhava uma paciente com um quadro extremamente grave.  Pouca ou nenhuma resposta teve mesmo após significativo tempo de internação.  Era uma psicose de tal maneira catastrófica e com tamanho sofrimento, que se desconfiou que não fosse, de fato, um transtorno mental e sim alguma doença clínica com comprometimento cerebral ainda mais intenso, como um quadro neurodegenerativo.  O fato é que pouco ou nada havia de melhora e sentia-me profundamente frustrado - em minha onipotência dos anos iniciais de médico - em terminar a residência com um tamanho fracasso terapêutico.  
Foi quando um dos meus professores orientou-me - “Vá despedir-se de sua paciente.  Convide-a para dar uma caminhada pelo corredor”. Eu retruquei: “Será?!  Ela certamente não vai aceitar, não entende nada do que falamos com ela, e de mais a mais, de que isto vai adiantar?”.  Ele falou-me: “Pode não adiantar de nada mesmo, mas vá lá, convide-a, vamos ver o que acontece...” 

Foi o que fiz, e muito descrente, achando que fosse uma espécie de trote final pelo término da residência. Qual não foi a minha surpresa quando a paciente não só aceitou, como prontamente começou a andar pelo corredor e fez alguns comentários até lúcidos sobre o tempo e sobre sua doença.  Falei que estava indo embora e ela me disse: “Já vai?  Não vai ficar mais um pouco?”  Disse que tinha que partir e ela disse tiau.  

Sei que parece pouco contado assim de modo tão sucinto.  Mas é que era preciso estar lá para ver a transformação que foi um convite daqueles no quadro clínico da paciente.  Momentaneamente, ela estabeleceu uma curta relação novamente compreensível e entendi, de pronto, a importância de não buscar simplesmente resultados satisfatórios, mas de buscá-los, sempre, do modo mais humano e respeitoso possível.
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Uma última lição, dentre as que me recordo de bate-pronto, versa sobre a função do médico psiquiatra (como, extensivamente, de todos os profissionais de saúde).  É retirada de um livro de história de psiquiatria, chamado “A Cura da Mente”.  Neste, o autor, após revelar séculos de história dos cuidados com a doença mental, que vem desde muito antes da psiquiatria ser psiquiatria, revela alguns dos desafios da disciplina para o século vindouro (que é este em que nos descabelamos).  
Quando o autor manifesta suas esperanças e debate os desafios que enfrentaremos neste período, diz que um dos maiores, sem dúvida, é fomentar, nos pacientes, o que ele chama de espiritualidade.  Adverte que é um conceito que tende a transbordar para discussões filosóficas, teológicas e pouco práticas mas que, o que está conceituando como espiritualidade é algo bem mais simples, e meramente: “preocupar-se um pouco menos consigo mesmo e um pouco mais com o outro”.  
Ou seja, perceber-se fazendo parte de uma organismo circular e complexo de ligações e sair da observação contínua e estafante do próprio umbigo. Assim, quando da morte de um parente próximo, perda de uma posição de renome ou da ruptura de um relacionamento, a primeira idéia que viria à mente não seria: “Não quero mais viver esta vida” e sim: “O que posso aprender com isto?  Como respeitar o caminho do outro e encontrar o meu próprio após uma perda tão dura?” 

Enfim, o sofrimento psíquico poderia ser visto como fazendo parte de um laborioso processo de aprendizagem e de maturação e não como um mal em si.  Isto não será conseguido através de medicamentos mais potentes ou com menos efeitos colaterais, mas, tão-somente se o médico aceitar a sua verdadeira vocação de clínico, ou seja, daquele que se inclina e oferece a mão para o outro levantar-se e, uma vez de pé, reencontrar o caminho seu, singular. 
Michael Stone, o autor do livro, relembra que, a religião era a psiquiatria, antes de existir psiquiatria. E onde foi parar esta influência tão grande da religião em tempos de positivismo e cientificismo extremados? Em suma, não é temerário confiar somente na ciência e nas estatísticas? Não se corre o risco de esquecer que o ser que sofre deseja, não só o alívio da dor, mas, outrossim, experimentar harmonia e crescimento?  

Tenho ouvido, finalmente, muitas pessoas dizerem que conhecem um médico pelo aperto de mão.  O que revela que as pessoas querem, quando precisam de ajuda, não só de técnica, mas de “human touch”.  Como dizia meu irmão, ortopedista:  “É como fazer bala de coco: pode encontrar a melhor receita e os ingredientes perfeitos, mas se a mão não tiver a temperatura certa, não tem jeito de dar liga”.   
Ser médico nada mais é que uma forma - bela, intricada e digníssima - de ser gente.

8 comentários:

Anônimo disse...

Três belas lições e uma alentadora revelação.


BjGrande

Alessandra disse...

Querido amigo médico, parabéns pelo seu dia!!
Sábias lições...

beijo
Ale

Anônimo disse...

Hamer, belissima homenagem!
Ética e simplicidade nas relações fazem o diferencial na profissão e
na vida. Eu, hoje, creio fortemente que este aprendizado se torna mais
fácil através do cultivo da espiritualidade, não importa a forma.
Obrigado.
Grande abraço.
Tadeu

Anônimo disse...

Adorei as três lições! :) Lindos textos!

Beijos!

Ana

Anônimo disse...

Amigos continuas sendo uma serena e digna figura, que teu verbo emabale nossos atos ´médicos e, sobretudo humanos

Anônimo disse...

Anotações do Alienista, na teoria & prática. Ou do Alien, no espírito & no sonho.

Unknown disse...

Hamer
Parabens pelo seu dia !
Fico feliz por ter escolhido este caminho: médico e ainda por cima poeta !
bjos

Manuela disse...

Adorei o texto, soube dar forma ao sentimento que sinto sobre ser médica e ter uma imensa vontade de ver o sucesso de minhas práticas clínicas, passando por cima da vaidade e aprendendo a cultivar o amor ao próximo!
Gde bjo!

Manu