(Para o amigo Fernando Chuí)
Uma página em branco. Distinta para um desenhista e para um escritor. O desenho é livre e as formas são únicas. Cá e lá, as opções se delineiam de modo contínuo e quase imprevisível. Uma paisagem antiga e viva. Hoje e ontem se encontram no vale ensolarado: o amanhã é provisoriamente dispensado. O farfalhar mostra que há vida, algumas batidas de martelo na reforma da capela o confirmam.
Vida, vida, vida. O escritor pode repetir seu jargão. O desenhista duplica seus motivos: telhados das casas amontoados, vegetação e ladeiras em fragilíssima harmonia. Em ambos, nostalgia. O escritor se lembra dos momentos vividos. O desenhista os captura para o futuro. A paisagem se move discretamente com o correr dos minutos. A escrita também. Os tons amarelados do esgarçar da tarde são capturados de modo sombreado, em negro, pelo desenhista. A proximidade da noite joga tintas melancólicas no papel de se escrever.
Papéis de se escrever e de se pintar são distintos. A obra inacabada do desenho sempre cabe naquela página, na tela única, no bloco de desenho, ainda que sua tinta jorre para outra folha, por defeito da caneta, do papel ou por necessidade da composição de transbordar-se para mais além de si mesma. A obra de escrever, que se propõe um desfecho tangível, geralmente amarra páginas em torno de uma idéia central e busca o todo com tintas que não se encerram no objeto da escrita e buscam, no leitor inesperado, o tecido onde tingirá seus liláses e efeitos sinestésicos...
Expressões libertárias, cada uma a seu modo. E que requerem um pouco de jeito e muito de atrevimento. Bocados de técnica e temperos inspirados: nunca a perfeição, morte de todo processo.
Uma paisagem exterior e um contexto vivencial íntimo. Aprender e esquecer: processo contínuo de assimilação e desgarramento. Poeta e artista se apegam e se desvencilham de valores com igual velocidadde. A arte só fará sentido se romper e caso, ao mesmo tempo, atingir uma nova síntese.
Naquela tarde que custava a morrer, de frente ao vale, tantas pessoas comuns seguiam sua rotina desassossegada, o desenhista esculpia em relevo mínimo, com lufadas generosas de seu nanquim, um jogo de contrastes e vazios, um jogo da velha contemporâneo, uma confissão de apaixonamento por um lugar que não era seu, por séculos de história que só se faziam sentir naquela breve necessidade de registrar o momento.
Pouco mais distante, em outra intensidade e frequência, o compositor rolava sua esferográfica em um papel pautado, donde os tons de terra e amarelos do dia a perder o fôlego de existir se embrenhavam no calor de chocolate, na brisa de cravo da noite a verter seus azuis. Quantas histórias por acontecer no desenho e na escrita?
E iam tocando suas vidas sem mais nada perceber por alguns minutos, quiçá uma ou duas horas, donde a vivência cotidiana, de se buscar o jornal na banca, de pagar a conta do telefone ou ir cortar o cabelo se punham suspensas, inutilíssimas. Por pouco mais de uma hora o verbo ser tinha aquela outra característica - uma co-criação entre o mundo imaginário e o real, entre personagens existentes e cavaleiros intangíveis, entre conspiradores decapitados de séculos passados e pedreiros a puxar uma soneca à sombra do flamboyant. E viver fazia sentido. E seguiam a estrada, de modo paralelo, entre realidades forjadas e ficções do dia-a-dia, tão necessárias nestes tempos de rudeza tamanha.
E já repercutiam em suas memórias o micro-efeito que a saudade instila e semeia, quando algo de realmente bom acontece. E o que é este acontecer? É a dispensa possível de uma realidade externa perfeita para se ser feliz. Por um átimo de minuto, um fim de tarde preguiçoso, no instante entre duas marteladas da reforma da antiga catedral. Quando cai a noite na cidade velha, vem-lhes a lembrança, neste improvável cenário, do efêmero que é existir.
Súbito, deixam de lado seus mundos particulares e param na fábrica onde pedem chocolates quentes - belga e francês - e ficam ali discutindo sem a menor possibilidade de acordo, qual deles era o melhor. Botaram os pés na realidade de novo. Obras infindas e infindáveis, escritor e desenhista seguem, então, seus caminhos... E já não são mais nem um nem outro...
5 comentários:
Você desenha com as letras...
Abraço
Menezes
Lindo texto, bróder, adorei. Desenha/reinventa a vida no suporte invisível do tempo. O inesquecível do afeto se torna agora também obra.
Abraço grande,
Chuí
Muito linda a sua forma de desenhar os momentos com as letras.Mais interessante ainda, e ver esses momentos acontecerem sem nenhuma pretensao de se tornarem textos tao incriveis.Gosto muito do que vc escreve.
estamos com saudades de vcs
luci BH 19/10/10
Muito linda sua forma de desenhar com as palavras. Mais interessante ainda e ver acontecerem os momentos,que despretenciosamente se tornarao textos tao bacanas.Gosto muito dos seus textos.
estamos com saudades de vcs
um abraco para o chui
LUCI 19/10/10 BH
Chuí, Menezes e Luci,
Obrigado pelas mensagens!
Abraços,
Hamer
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