18.2.10

Quem paga a conta?

Repensando a influência da propaganda da indústria farmacêutica na conduta médica.

Recebi a visita de um grande amigo de faculdade recentemente.  Chegou numa quarta-feira chuvosa e tentei desmarcar parte dos compromissos para almoçarmos juntos uma bela feijoada mineira.  Veio de uma cidade do nordeste, onde fixou residência e contou-me, além das novidades ensolaradas do seu filho que havia acabado de chegar, que viera aproveitar a oportunidade de um lançamento de anticoncepcional para fazer compras em São Paulo e visitar a família em Piracicaba.  Convidou-me para o jantar de lançamento deste produto, em um dos melhores hotéis da capital paulistana, onde sua estada seria paga pelo grupo farmacêutico, bem como as passagens aéreas e despesas com táxis e refeições.  Chegamos atrasados devido ao trânsito pela visita de uma figura internacional à nossa já congestionada Sampa. 

Tivemos tempo de escutar à última pergunta ao palestrante internacional: “Será que o fármaco X poderia ajudar a um quarto grupo de pacientes: os que etc., etc.?” Confesso que fiquei fascinado com a resposta do palestrante: “Não, por isso, isso e isso”.  Pensei comigo: “Uau, quanta sinceridade!”.  Logo veio a segunda parte da resposta: “A não ser que... aí sim o nosso lançamento poderá ser utilizado”.  Entendi de imediato: tratava-se de uma estratégica forma de responder que sim, apesar de ter, aparentemente, respondido que não. 

Assistimos, em seguida, a um espetáculo de teatro, divertidíssimo, cujo tema era a patologia para a qual tal remédio estava indicado e todas as situações embaraçosas que o não-tratamento poderia causar – o casamento entre a música e a velocidade da peça foi impressionante.  O autor reportou ter levado dois meses e meio entre a concepção e o preparo do espetáculo.  Notei, sob um ponto de vista diverso, através da arte, a importância do tratamento: as informações entravam por todos os buracos da face e pela pele – na temperatura agradável da noite no imenso e, ainda assim, aconchegante salão. 

O fato de ser psiquiatra, ou seja, um espião naquele simpósio de ginecologia, deixou-me com a pulga atrás da orelha: fiquei preocupado em como a propaganda poderia influenciar nas decisões clínicas.  Depois de alguns minutos relaxei e pensei: “Ah, são todos médicos conscientes, não vão se deixar levar por estas sutilezas...”.  Notei que a luz laranja deixava o ambiente com uma característica etérea, e, de fato, as pessoas e as taças que aguardavam o vinho importado ficavam bem mais harmoniosas sob seu efeito.  Os trajes alinhados indicavam que se tratava de um evento e tanto.

Logo chegou a parte mais aguardada pela platéia (e por mim, admito): o coquetel!!! Devo confidenciar que não tenho capacidade para redigir algo mais poético que o cardápio daquele jantar e que foi com maestria que o chef transformou-o em realidade.  Só para instigar, transcrevo a sobremesa: “Mousse de chocolate branco recheado com creme de pistache, servido com geléia de pistache e hortelã, ganache de laranja e tuille de chocolate branco”.  Peço desculpas se, involuntariamente, colaborei com a quebra do regime de algum dos leitores. 

Olho para o teto, divagando um pouco mais na questão filosófica que se me apresentou durante a noite e relembro o Prof. Pacheco e Silva que dizia ser uma pena que o médico só descubra que foi um filósofo no final da vida.  Tal lembrança me alivia e faz com que aprecie o largo tabuleiro em forma de jogo da velha que compõe o requintado lustre com um novo olhar: realmente estamos falando de um jogo a ser travado entre a pressão da indústria e o bom senso clínico.  Se tais estratégias de marketing não funcionassem, porque seriam adotadas? É lícito uma empresa visar o lucro, mas quais são os limites desta equação?

Fiquei satisfeito com a pasta de couro ecológico que recebi como souvenir, apesar de não saber de fato como utilizá-la, mas, certamente, a caneta com que fomos brindados terá lugar na minha maleta médica.

Acordei com o nome do medicamento na lembrança!  Impossível, como enfiaram este intruso na minha cabeça?!? Comentei com meus colegas de consultório que tinha ido a um jantar magnífico no dia anterior, e, entre risos, disse ser uma pena não ter como agradecer prescrevendo a tal medicação, uma vez que não faz parte do meu ramo de atuação. 

Lembrei do último congresso de psiquiatria, da “Psicolândia” como chamou o Prof. Ronaldo Laranjeira, referindo-se ao parque de diversões que a indústria monta para alimentar/divertir/brindar/informar(?) os médicos.  Recordo-me da mesa redonda onde a ética na relação com a indústria farmacêutica foi discutida: é óbvio que a pesquisa farmacológica merece ser aplaudida e que as empresas têm uma relação unha e carne com o desenvolvimento das terapêuticas - mas qual é o limite entre a admiração e o encantamento?

A literatura mostra que quanto maior a proximidade com as empresas (receber presentes, visitas de representantes, viagens a “congressos de atualização”), menor a percepção do médico de estar sendo afetado por estas estratégias.  Também é importante notar que a maioria dos médicos não se sente manipulada pela propaganda, mas admite que ela pode funcionar com os outros médicos (Uau! Que paradoxo! Só eu é que sou miolo mole?!).

O psiquiatra Prof. Dr. Leon Garcia alertou para o fato de que, depois de um congresso no Taiti, pago pela indústria, a prescrição do medicamento alvo subiu de 200 a 400% entre os que participaram do evento!!!  Coincidência?! Será que os médicos não sabiam da existência do fármaco?!

Um artigo interessante sobre a questão, “Who pays for the pizza? Redefining the relationships between doctors and drug companies” alertou-me para um fato: se o jantar valeu para o médico e para a indústria, alguém deve ter pago a conta: quem terá sido?

Qual a melhor forma de interação com a indústria farmacológica, quais os limites saudáveis desta publicidade: eis as questões com que me deparei, ainda sem respostas (dizem os filósofos que mais importante que a resposta certa é a pergunta certa).

Por um tempo, não receberei visitas dos amistosos representantes de laboratórios, mas peço compreensão: preciso “desimantar minha bússola”, para tanto, sugeriram-me Machado de Assis, Dostoievski e Hermann Hesse.

No final das contas, a feijoada mineira me caiu bem mais leve que o suflê de pistache...



Para quem quiser ler mais:
1.              Moynihan R.  “Who pays for the pizza? Redefining the relationships between doctors and drug companies”. BMJ  2003;326:1189-1192 (31 May). Disponível em: http://www.bmj.com/cgi/content/full/326/7400/1189

2.              Campbell EG, Gruen RL, Mountford J, Miller LG, Cleary PD, Blumenthal D. A national survey of physician-industry relationships. N Engl J Med. 2007 Apr 26;356(17):1742-50. 

6 comentários:

Daniel Sócrates disse...

Caro Hamer,
Vc parece ter um dom, tanto nas suas conversas como nos seus textos, de nos deixar à vontade para falar e pensar sobre assuntos-tabus.
Eu também já fui "vítima" de toda sorte de abordagem de Laboratórios, uns mais agressivos, outros mais disfarçados.
Como se sofresse da "Sindrome de Estocolmo", defendia e me aliava aos colaboradores da Indústria Farmacêutica - meus algozes. Chegava a me surpreender angustiado, culpado até, por não estar correspondendo às expectativas daqueles tão simpáticos e prestativos representantes que dependiam da minha prescrição para manterem seus empregos...
Até que notei que, como um índio da época da colonização, estava sendo vitima de escambo, trocando meu bem mais valioso, minha prescrição, por quinquilharias.
Já tenho pastas baratas demais, canetas-da-25-de-março demais, blocos de recado, massageador de cabeça (acredita???), pesos de papel, porta-retratos, porta-clipes, porta-blocos, porta-canetas, porta-celular.
A nossa profissão já está por demais depreciada, mas ainda penso que minha decisão clínica vale mais que meia-dúzia de canapés e uma taça de champagne nacional.
Grande abraço,
Daniel Sócrates

Hamer Palhares disse...

Daniel,

É isto mesmo. Alguém sempre paga a conta. Geralmente são os pacientes e nós mesmos.
E a gente lá tem tempo de usar o tal massageador??
Abraços,

Hamer

Unknown disse...

"Enquanto
tenhamos nosso corpo, e a alma se encontre mergulhada nessa corrupção,
jamais possuiremos o objeto de nosso desejo: a verdade.(...)Mas, se não
é possível nada conhecer com pureza enquanto a alma está unida ao
corpo, é preciso de duas coisas uma: ou que não se conheça jamais a
verdade, ou que se venha a conhecê-la depois da morte", Sócrates. E não
é por acharmo-nos tão confusamente atordoados na busca do verdadeiro
conhecimento que abandonaremos os questionamentos!Um brinde à beleza da
filosofia e de seus argumentos! Belo texto e muitíssimo bem colocado,
bem sabemos, nós, médicos, quão tênue é a linha entre ceder às miragens
da indústria farmacêutica e seguir ao juramento de Hipócrates!
Beijo!
Manuela Fonzar

Hamer Palhares disse...

É verdade, Manuela.
A idéia é justamente a de buscar o equilíbrio, conforme nos ensinava Aristóteles. Num mundo pressionado pela velocidade das informações, é importante voltar de vez em quando aos livros empoeirados dos velhinhos da Grécia.
Bj,

Hamer

Anônimo disse...

Amigo,

seu texto traz à tona a velha polêmica em torno da promíscua relação entre a medicina e a indústria, onde a ética fica espremida e o elo mais fraco e sem voz se rompe.

Mas eu, como seu colega médico, pergunto: como explicar a venda de espaço de blogs (como o seu) para a propaganda de clínicas e serviços médicos? A lógica é a mesma? Como você explica o embate entre a vantagem, a necessidade de sustento e o patrocínio puro?

Abraço

Hamer Palhares disse...

Caro colega,

Bem notado.
O ser humano, é, por definição, contraditório.
De qualquer forma, não fui eu quem escolheu estes anúncios do Google e não me mantenho às custas deles e até hoje nada recebi por isto. Realmente é uma forma de vitrine on-line e estamos imersos em um mundo de propagandas. Não há nada de mal em se fazer ou promover propagandas, desde que legítimas. O problema está em não reconhecer que somos todos influenciados por elas, sem o que este ramo de atividade não existiria.
Cabe a cada um pensar qual o grau de relacionamento que fará com as diversas indústrias.
O problema é a falta de percepção de que pode ser algo nocivo, como você bem alertou com sua provocação.
Também estou revendo os Ad-sense do Google.
Abraço,

Hamer