(Fragmentos de um romance virtual).
Capítulo VI - Um senso inacabado de justiça
Meu nome é Jorge Brasil Pereira. Embora muitos me chamem de Brasil, como tantos outros xarás nascidos na desembocadura dos anos 70, prefiro
ser chamado apenas Jorge, pois é menos comprometedor e mais direto. Associo meu nome a uma postura mais definida e assertiva diante da vida, ainda que, neste quesito, por certo deveriam chamar-me Brasil.
Acabo de sentar-me ante a escrivaninha, ainda suado por ter terminado há instantes uma corrida à cata de um marginal que roubara a bolsa de uma senhora. Comecei a correr com o embalo dos outros transeuntes, mas cessei logo depois da bolsa arremessada ao chão - o ladrão percebera que seria pego e desfazer-se do resultado de seu trabalho seria um modo turvo de afastar a atenção dos perseguidores que visceralmente se botaram em seu encalço. Meu fôlego ou meu ânimo me dissuadiram de continuar a corrida. Alguns compromissos pessoais, a agenda, o calor da cidade que não respira nas horas próximas ao almoço, a fome, um senso inacabado de justiça. Pensei em retornar pelo caminho inverso no intento de conseguir, por acaso, esbarrar em alguma viatura policial que pudesse dar continuidade à perseguição. Nada.
Por estar na vizinhança de minha morada, acabei decidindo-me por entrar, suado, ligar um som qualquer (para isto o rádio é mais pertinente que qualquer outra forma de companhia). Ligo-o e eis que já está sintonizado na estação de minha preferência, o que me poupa algum esforço extra.
Corro para a máquina de escrever. Aqui, estou a salvo de bandidos. A grande ameaça sou eu mesmo. Penso em retornar a perseguição pelo assaltante, ou perguntar aos vizinhos em que resultara aquela aventura. Espremido entre dois medos, prossigo.
A música mansa se imiscui na interferência com os acontecimentos recentíssimos e percebo uma zona sombria onde diversas casualidades se entrelaçam. Como este arranjo pode interferir no caminho que traço, se é que isto é factível, é algo que busco descobrir.
Narramos o que é vivo. O que é vivo se desvenda, de forma sensual e descontínua, ora brusca, ora firme, ora sutilmente. O que narro rouba verbos da parede adormecida. Rouba interjeições do gatuno desesperado correndo ao sol das onze horas. O que narro é um arrancamento de histórias embriagadas e estiradas à sarjeta, esmolando um gole de água. O que conto espolia nuanças da guitarra distorcida em palpitações esganiçadas na mão dum violeiro já morto. Não sou sem tais influências. Por isso este desespero em acordar os músicos que já foram, por isto esta sede intensa de olhar a esmo para a parede, para os retratos risonhos que contam fragmentos congelados e imperecíveis de aventuras cuja importância já não temos como comprovar. Em nome da vida do que é narrado ouso atirar uma pedra no calabouço dos meus mais sórdidos pesadelos, atrevo-me a despertar a besta que se multiplicará em agonias, mesmo sem saber se poderei contê-la, mesmo sem garantia de resultado algum, mesmo sem saída de emergência.
Sou funcionário público. É difícil confessá-lo, por isto este tanto de capítulos, por isto esta enrolada tergiversação. Daí a necessidade da ação de confessar. Mas não me encaixo no estereótipo. Certo: se me encaixasse, é bem verdade que diria o mesmo e, deste modo, não haveria prova dos noves possível. Logo, melhor narrar o que há por ser narrado. O que digo é que não sou apenas um funcionário público; isto talvez por ter sido tocado, antes dos vinte anos, já atendente no cartório onde trabalho, por um filme sobre um japonês que após trinta anos de dedicação insossa à labuta descobrira estar doente de câncer. Ele percebera que o único modo de perseguir alguma forma de existência para além do roteiro improdutivo e já decorado de sua rotina modorrenta seria fazer algo para o outro, para aquele que viesse depois dele e, também para aquele que já se apresentava ao lado dele, (ou à frente, se estivermos falando de alguém que busca um simples serviço de reprografia ou de autenticação de documentos). Este filme tocou-me de forma inquietante e curativa e percebi que, à segurança e estabilidade da carreira pública deveria esforçar-me por aliar algo inusual, insólito, raro. Percebi logo cedo que a tentação por um açodamento da profundidade de experimentar qualquer reação emocional seria uma constante e cambiante sereia. Via esta sereia abocanhar e destroçar a todos os usuários do serviço do cartório quando estes não eram olhados nos olhos pelos funcionários. Este esforço – luta contínua na areia movediça quando o melhor teria sido ficar quieto boiando - seria o único guia na noite escura que é descobrir na vida quem, de fato, se é e para quê se vive, se é que existe este tal para quê.
Desenvolvi uma curiosidade louca pelo cinema depois deste tabefe que foi o filme japonês. Percebi que ali havia mais que entretenimento. Muitos já terão notado o mesmo e nisto não há revelação nenhuma, devo reconhecê-lo. Mas o que afirmo é que houve uma revelação para mim, uma vez que é próprio das revelações só serem feitas a uma pessoa por vez – traço comum destas com os delírios. Assim, devo meu reconhecimento, mais que agradecimento, a esta descoberta (uma vez que nem sempre nosso encontro foi tão aconchegante e cordato). Não tive influência alguma neste hábito. Os cinemas eram lugares pouco convidativos no bairro onde eu morava e eram vistos como pontos perigosos para os jovens por um certo hábito, que nunca pude comprovar, de uso ou venda de drogas em algumas salas e pelo conteúdo tentador e desviante de muitas sessões. Havia também um zelador, o seu Maneco, que diziam ser chegado em meninos, motivo a mais para que os cuidadores proscrevessem a freqüência àquela sala de pecados. Apesar de nunca ter sabido muito mais sobre o seu Maneco, que era também o responsável pela bilheteria e arrumação da pequena sala de aproximadamente setenta lugares – setenta desconfortáveis assentos - guardo e sempre guardarei uma boa lembrança do modo decidido e respeitoso com que ele apertava o ombro dos garotos e os cumprimentava mirando na face. A mim me interessavam mais as histórias que corriam na tela, especialmente na sessão de terça-feira, dia dos filmes clássicos e antigos, onde a meia-entrada de estudante permitia ver duas películas.
Devo creditar que aprendi sobre sexo no cinema. Antes disto, era apenas o capricho repetitivo das manipulações que a garotada descobre nas conversas quando se joga bolinha de gude ou baralho, quando se tenta dormir e um despertar quase genético aquece toda a área que vai do abdome às margens internas das duas coxas. As mulheres eram vistas como objetos de desejo e como um time de lá, algo que precisava ser vencido para ser desfrutado. Não pensávamos que elas pudessem sentir desejo, ou ter anseios além do banal matrimônio glamouroso – este evento que lhes recuperaria da condição inferior de não ter o que chamavam de falo e cujo significado só fui entender muito tempo depois. As mulheres eram, enfim, aquilo no que os meninos deviam pensar, uma costela que teria valido a pena perder, visto que havia tantas outras... Mas o cinema me reapresentou o que é o sexo e o que é a mulher, ao que lhe serei eternamente grato e motivo pelo qual não nos reconciliaremos jamais. Melhor assim.
Talvez o cinema tenha sido uma fuga para suavizar a maior das dores que conhecera até aquela época: ter perdido a mãe, dona Estela, aos 12 anos. Este foi um batismo às avessas para mim. Desde então sou pagão e posso dizer que perdi a fé. Mas ganhei certo modo curvilíneo de interagir com as pessoas, um sorriso envergonhado e um aperto de mão forte - heranças que de imediato se me instalaram. Esta foi a alça da sua cama eterna que seguro ainda hoje, por isto a agarro tão firmemente. O resto da família prosseguiu como um concerto sem maestro, por isto cabe-se-lhe esta apresentação cáustica de “resto da família”, ainda que os ame a cada instante de modo variado e ainda mais intenso. Havia dito, nalgum trecho anterior, que não havia motivos para perscrutarmos no que já é estabelecido – a herança familiar, pois meu fardo é o dia de hoje e é sobre ele que opero: é atrás da bolsa roubada no dia de hoje que se deve correr. Agora já não estou tão certo assim...
Ter sabido que a tuberculose a subtraíra de nosso convívio, este mal tão já conhecido, de diagnóstico fácil e para o qual umas plenas garfadas de boa comida teriam sido a melhor forma de prevenção é algo que acrescentou em meu caráter um fino verniz – invisível e irremível – de infâmia. Os gestos graciosos, a suavização do modo matemático, justo e previsível com que nosso pai nos apresentava o destino, o seu capricho no feitio das roupas para a garotada e para as bonecas de sabugo de milho eram contrapontos benfazejos à realidade canhestra daqueles dias de iniciação na mazela da existência. As roupas e o seu cerzir vinham, sem dúvida, de algum lugar de sonhos ou do seu enfrentamento pessoal do Hades do fôlego curto e da dor que lhe transpassava o peito até as costas, da urgência por ir tossir às escondidas. Agora compreendo de forma mais heróica e rutilante aquele seu jeito de dizer que “não era nada, não; só bobeira do tempo virado”, que eu devia era me preocupar com minhas lições e com meus irmãozinhos e que devíamos tomar cuidado para secar bem o cabelo ao sair do banho.
Meu irmão mais novo por certo não entendia nada daquilo tudo e só queria saber de brincar com a caçula de dois anos e meio, ainda imersa nalgum pântano hermético das fábulas menineiras.
Veio, assim, da necessidade de suprir o vácuo deixado pelas roupas vendidas pela minha mãe, pelo ralear das provisões que mantinham nossa casa, a (minha) decisão por começar a trabalhar, o que foi arranjado pelo patrão do meu pai, Dr. Leônidas, que tinha conhecimento com os advogados e com o pessoal da prefeitura. Passei a ver os dias como um amontoado de números, tintas, filas e com uma torcida angustiante pelo caminhar desatinado dos ponteiros do relógio pachorrento sobre a caixa quadrada, amarelo-ferrugem e indiferente onde se batia o ponto.
Da própria improficuidade de tantos dias baldados, malogrados e repetitivos surgiu a necessidade de mudança, como um deserto clama por brisa, como um outeiro que pretendesse revelar paisagens inauditas. Havia um câncer que queria carcomer o estilo sonolento e apoquentado daquela maçaroca de dias que se empurravam uns aos outros na circularidade catracal do calendário. Fitando-o, percebi que ou o enfrentaria agora - consciente e integro - ou teria que fazer as contas com uma realidade cuja gravitação só longos anos de senilidade e indiferença o me reapresentariam sob um aspecto um tanto mais carnal, carnívoro e metastático. O convite a repensar a vida vinha do olhar perscrutador e folgazão da menina que decorava o tal calendário, carregando uma cesta de café da manhã com três gatinhos dourados recém chegados ao mundo.
Decidi, se é que foi assim que realmente aconteceu, a revirar os tantos livros de nossa pequena biblioteca do cartório. Ali havia cerca de cinqüenta ou sessenta livros, a maioria dos quais doações dos próprios funcionários, alguns clássicos vendidos nas bancas de jornal empoeirados mas em perfeito estado de conservação (existe algo mais triste que isto?). Estes companheiros passaram a ser os lenitivos para os minutos que – por sua escassez e desagregação - não serviam para mais nada entre a folga do almoço e o recobrar do ritmo para a tarde na repartição.
Os livros conversavam comigo de um modo que as pessoas não estavam habituadas a fazer. Ou talvez o contrário: não estive, até então, tão habituado a escutar as pessoas com a mesma nitidez e disposição de espírito como agora fazia com os romances. Sim, os romances, mais até que os contos e que os poemas - apesar da forma e força verticalizada e bombástica destas micro-estrelas – cingiam-me de modo nebuloso e assombroso e contra eles não consegui jamais me escudar. Não posso dizer se a influência dos romances foi-me maior na constituição do caráter que as tardes que se esticavam languidamente noite afora pelas salas do cinema. Sei que o prazer de trazer a tela nas minhas mãos, na minha mente - que se ria de todos que continuavam a seguir a rotina ao passo que eu me permitia aqueles momentos vitais de alienação - era da ordem do voluptuoso e estupefativo. Afirmo, no entanto, que a algazarra e a plêiade de minhas defectibilidades e vícios de natureza são semelhantes a tantos personagens da literatura que me sinto, sem nenhum prejuízo de todas as qualidades luminosas que minha mãe me outorgara desde infante, uma cria de páginas de diferentes autores agindo simultânea e descoordenadamente. Um Frankenstein de papel.
O apelo à escrita, antes de um gesto de fruição estética, constitui, desta feita, uma razoável e compreensível busca de agir no único planeta onde posso sobreviver algum tempo sem máscaras, escafandros ou rede de segurança.
Esta dupla tentação, de um lado a realidade a cobrar-me ganhar o pão, dizer coisas compreensíveis para pessoas que as queriam compreender, saber o preço do peixe, do veludo e da aguarrás e, por outro lado, a magia de viver alheado entre livros, músicas e amores impossíveis constituiria a minha saga intermitente, a febre terça maligna daqueles anos futuros.
Fui obrigado – tem algum valor esta palavra a não ser quando procuramos agradecer? – a cursar a faculdade de economia e contabilidade. Novamente o curso retilíneo e confiável dos números, a segurança férrea da calculadora, o seu deslindar de possibilidades apenas previsíveis foram uma certa forma de ancoradouro à insegurança dos encontros que poderiam ter sido e que não ocorreram em minha juventude. Os livros e os filmes cosiam uma música em contratempo com a realidade chapada, factual. Passei por uma fase de obsessões. Durou bem mais que a escrita desta última frase. Ah, se durou... Percebi, por volta dos dezessete ou dezoito anos, que assistia a vida. Era isto: um personagem - talvez o central, vá lá – de minha vida. Não existia isto que acabei de deitar à folha: minha vida.
Comecei a freqüentar outras bibliotecas e interessei-me por livros que contassem como as pessoas se comportavam, como deveriam se portar e - me interessava ainda mais que isto – pelo modo como elas deslizavam, como se tornavam ridículas. Claro, havia algo de sádico e brincalhão por esta preferência pelo que é risível e burlesco, até grotesco. Mas era mais que isto: era a percepção instantânea que mais por conta do que é defeituoso e menos pelo que é sadio e aprazível é que alguém pode se afirmar como indivíduo – este treco inusitado que se não pode aquinhoar ou superar.
Acabei me deparando com os estudos sobre ética. Não sei se foi um bom negócio: antes vivia menos preocupado e de forma mais fluente, mais direta e natural. Mas me carcomia conceber como nós sempre estivemos – e permanecemos - propensos a uma intimidade e pessoalidade na decisão do que é certo e errado, geralmente fazendo o prato da balança pender para o lado mais querido, ainda que o julgássemos mesquinho e egoísta. E pela tendência à repetição destas escolhas, ainda que reconhecêssemos o caráter aviltoso desta neurose. Ser rato daquelas bibliotecas e das angústias daquelas ficções, tomar o café ralo com bolacha água e sal que era servido na Municipal, resultou-me em motivo dobrado para a gastrite que pouco mais tarde me açoitaria sem indulgência. Resultou-me outra dor, esta maior: a de ser professor convidado da faculdade de medicina e de ter Letícia na segunda fileira, na primeira aula daquele semestre luminal que estava por começar. E a vergonha por tê-la encontrado de modo diferente do planejado, sem minha prontificação por encontrá-la, sem meu esforço deliberado. A vida se adiava mais uma vez. A vida radiava mais uma vez. A vida – a que eu planejara - era subtraída de mim como uma bolsa roubada e atirada ao ar longe de meu alcance e eu voltava a escrever sobre ela. Deveria ter corrido mais? Deveria ter buscado o assaltante, ainda que ele me levasse a vitalidade deste corpo? Ainda que me ferisse?
Letícia erguia o braço e lançava uma pergunta ao ar. Estava decidido a honrar todas as horas em que vaguei pelos cinemas, pelas bibliotecas, os infinitos gastos em me tornar um perito em esquisitices – se o normal era a repetição maquinal das contagens de folhas e autenticações. Concentro-me por ouvi-la: esta bolsa não deixaria escapar. Meu espírito estava dentro dela.
2 comentários:
Hamer aguardo seus textos com vários sentimentos:
um deles é a curiosidade...o que olhar sensível deste contador de história vai ver, pensar ...sentir e escrever? ou ainda o que vai me fazer pensar e sentir...este me põe a pensar na subtração da vida...
Abraço
Eroy
Doctor! Não temos mais capítulos?
Jornada tripla, oferta gera demanda!
abs.
Postar um comentário