23.2.10

Cabeças trocadas

"A presidente da Argentina é mulher, o dos EUA é negro, os homossexuais andam pela rua de mãos dadas, o homem foi a Lua e a internet é uma realidade... mas tá assim de gente boa e com cultura que se recusa a tomar remédio quando precisa..."

(De um paciente meu, que não precisa mais de remédios... - sob autorização) 


A frase acima, já dispensa o texto abaixo, então, se você estiver muito atarefado e já captou a mensagem, melhor ainda, volte para seus afazeres ou para o lazer e será ainda mais feliz.  Mas já que ganhou tanto tempo assim, porque não chegar até o final do texto, não é mesmo?

Psicofarmacoindústria. Há uma pressão corrente da indústria, da mídia, do cinema e dos canais eletrônicos de comunicação a encher-nos de (des)informações sobre saúde mental, obesidade, dependência de drogas, tabaco e álcool. Inegável. Paralelamente, testes on-line, cartilhas de felicidade, propagandas de novos bálsamos e medicamentos para quase todos os males são veiculadas, ainda que sub-repticiamente. São as garrafadas modernas. Há uma lista específica apenas para cotar a venda dos livros de auto-ajuda. Informações de boa procedência também as há e aos montes, sejamos justos.  Mas quem é que tem tanto tempo assim para ler tanta coisa?  E viver a vida, onde é que fica?

Psicofarmacologia e psicofarmacoterapia.  Uso racional de medicamentos para o tratamento do sofrimento psíquico e transtornos mentais que respeite princípios de diagnóstico preciso e correto de tais males. Sem expectativas irreais. E que não prescindem de uma boa dose de arte. O psicofarmacologista não roda as horas noturnas pensando em como tirar o trabalho dos psicoterapeutas.  Há uma guerra desnecessária - quase tão tola quanto todas as outras - entre os que defendem uma ou outra linha de compreensão da mente.  O ser humano não é epifenômeno de acontecimentos neurofisiológicos veiculados nas profundezas encefálicas.  Tampouco é um psiquismo des-encarnado.  Como entoava Sting: "We're spirits in a material world".  E somos o próprio mundo material...

Estamos às vésperas do DSM-V, bíblia da Associação Americana de Psiquiatria que teria sido muito útil para o Alienista de Machado de Assis, especialmente se Machadão tivesse um olhar muito mais tacanho do que a boa ventura tão generosamente lhe concedeu.  Somados virtudes e mazelas, cabe concluir: o DSM, como força-tarefa, é útil e - dada a tamanha disparidade cultural e as fronteiras ainda (e sempre) não vencidas pela comunicação, é indispensável. Óleo de fígado de bacalhau: já que temos que engolir, o melhor é que o façamos depressa. A grande ameaça, contudo, é a de imprimir à psiquiatria o mesmo modelo fast-food de venda de produtos: o diagnóstico pode ser dado em uma consulta! E, mais grave ainda, a maioria dos psiquiatras o fazem em questão de poucos minutos! Ainda mais sob a pressão de arranjos de trabalho cada vez mais opressivos...  Estaremos à beira da "para-psiquiatria"? Não, fazer psiquiatria é como re-descobrir uma receita típica no fogão a lenha: leva tempo, é preciso a temperatura emocional adequada, é preparar o produto com a legítima devoção. Um professor meu costumava dizer que é preciso alguns fios de cabelos brancos... E dizia que a base do estudo da Psiquiatra se assenta no tripé (que vale para os profissionais da saúde mental, em geral): psicopatologia (o conhecimento dos quadros patológicos e da experiência do sofrer mental, via empatia), psicofarmacologia (estudo dos sistemas cerebrais, neurofisiológicos e dos efeitos dos medicamentos no organismo, incluindo indicações clínicas, farmacocinética, farmacodinâmica, reações adversas e seu manejo, etc.) e, finalmente, psicoterapia (o tratamento interpessoal do indivíduo - e não apenas do transtorno mental).  Para isto: atualização contínua, supervisão, psicoterapia pessoal. E saber ouvir e captar significados. Um treinamento - técnico e emocional - de maratonistas.

Consequentemente, a conta não fecha: a demanda por atendimento em saúde mental é expressiva e vem aumentando. Some-se à receita: o uso amplo de álcool e drogas, a dificuldade e os custos da formação, baixos salários dos profissionais de saúde, a fúria monetária dos convênios, o dinheiro da saúde desviado para os marqueteiros. Por outro lado, a melhor divulgação de conhecimento, a quebra sequencial de tabus e, finalmente - ainda que isto tenha um cheiro de utopia - o fato do homem estar assumindo seu lado sapiensSapiens de Homo sapiens.  Sapiens significa que não somos só carne, ossos, nervos e ligamentos.  Somos sabedoria.  E como tal, o homem questiona, sente, luta, idealiza, odeia.  Tem fome, mas tem também apetite.  Tem desejo, mas também erotismo.  Tem sede, tem paladar.  Tem vergonha. Arrepende-se. Tem honra e saudades.  Em resumo: tem mil maneiras de sofrer.  E o que sofre no homem é também o que se chama alma.  Mas que diabos é a alma?  "Alma é esta coisa que se questiona se a alma existe", segundo o mago Quintana. E ponto. Para a medicina, a alma se chama mente.  Ok, todos sabemos que não é exatamente isto, a alma é um conceito mais transcendente e a mente é um conceito mais técnico.  A mente precisa do cérebro para existir. Quanto à alma, quem é que pode responder?  

Corpo e Mente, uma dança arquimilenar.  As inter-influências entre corpo e mente são amplas: estrela e brilho; átomo e poesia.  Indissociáveis.  Na verdade, esta divisão só existe mesmo, assim tão clara, na nossa mente - ops! Resquícios de uma herança cartesiana - que se pensava capaz de todos os desafios vencer - e de um referencial positivista de ciência (que já vem mostrando estigmas de cansaço).  O próprio Descartes mostrava-se atônito em seu "As paixões da alma", uma vez que a alma não se deitava a seu método matemático de análise. Alguém por aí já viu uma mente andando sem corpo ou um corpo bailando sem mente?  Thomas Mann notou bem esta ciranda em seu "Cabeças trocadas".  O corpo é substrato para existência da mente que o modifica e é por ele constantemente influenciada. Moto-perpétuo. Quando se apaixonam, quando sofrem e quando se rejubilam, é o ser todo que o faz. Homo e sapiens.

E por que tamanho preconceito - quando é preciso tratamento - com o uso de psicofármacos?  Uma das dificuldades, ainda, pode ser o hiato de informações respeitáveis e de fácil acesso. No entanto, não estou falando de gente iletrada, mas de advogados, religiosos, dentistas, filósofos, médicos, profissionais de nível técnico e superior. Gente que se conecta ao mundo virtual, que assina revistas, que tem TV a cabo e geladeira que solta gelo na porta. E que se ressentem com a idéia de usar medicamentos para tratar sofrimentos mentais. É... nada se compara ao pré-conceito.  Ou seja, a idéia rija que se tem anterior a qualquer conceito (e que perdurará mesmo quando apresentado ao real conceito...). E que é cascudo, refratário, indisponível a mudar-se.  É o famoso "Não li e não gostei", atualizado para "não tomei e não me adiantou para nada".  O modo de lidar com o preconceito pode ser indireto, ao estilo mineiro, comendo pelas beiradas. O que também leva tempo...  Propaganda balanceada e realista, maior aceitação do fato que o padecer fez, faz e fará parte da existência.  É preciso ao homem o ato de se rever.  De frente para trás e de volta para a frente, a palavra auto-reflexiva: rever.   

A imagem em espelho daquele preconceito é a do sujeito que pensa que vai resolver seus problemas apenas tomando medicamentos.  Não, não vai.  O uso de fármacos pode ser essencial, mas, em saúde mental, o paciente é - também e principalmente - agente transformador.  O medicamento não vai nos transformar em abobados, tampouco em espertalhões. Ainda que a mídia teime em afirmar o contrário. A menos, é claro, que o sejamos, a priori e em essência.   O uso de medicamentos serve para "engraxar" uma máquina que vinha soltando alguns rangidos.  O tratamento como um todo, entretanto, é uma partitura tocada a quatro mãos.  Pode até colocar-nos de pé novamente, mas querer andar já é outra história... Bion afirmava que o encontro terapêutico é um encontro entre dois seres e, preferencialmente, um menos ansioso que o outro. Logo, é o médico que decide se o medicamento é necessário e por quanto tempo mas é o paciente que decide se e quais relacionamentos deve perpetuar. Se deve dar duro no trabalho ou arranjar mais tempo para ficar com a avó doente. Se faz aquela viagem para o Nordeste ou para Santiago de Compostela.  Como já diagnosticara precisamente Sartre: "o homem está condenado a ser livre".  A doença mental pode ser a pseudo-reversão desta condenação, sob um claustro ainda mais embolorado e pesado, menos luminoso que o de Sartre.  A beleza de cuidar de um ser humano em sofrimento, sendo também um ser humano - e muitas vezes, também em sofrimento - é este exercício único e contínuo de liberdade.

10 comentários:

Leonardo Costa disse...

Realmente...o tratamento dos ´transtornos` é que é o trasntorno!
Tantas contradições e cada ponto de vista acha que é o todo!
Boa Hamer, valeu!!!

Abços

Léo

Anônimo disse...

Hamer querido!
Um texto lúcido, corajoso e muito reflexivo....
Fiquei me perguntando será que profissionais que cuidam das dores=cuidadores se dão conta disso nas longas jornadas diárias?????
Um abraço
Eroy

Anônimo disse...

Olá Hamer:

Parabéns pelo texto.
Na graduação, tive um professor de semiologia, que dizia uma frase, que freqüentemente repito de forma concordante:
"a maior contra-indicação é não ter indicação".

grande abraço - Pessanha - Cajuru SP

Hamer Palhares disse...

Eroy,

Sei não... tenho minhas dúvidas. O problema é fazer o trabalho de forma maquinal. É preciso estar atento e manter-se afetiva e intelectualmente plugado.
Abç,

Hamer

Hamer Palhares disse...

Meu amigo de Cajuru,

Sem dúvida, a maior contra-indicação é não ter indicação. Não dá para fazer medicina mental como quem faz estética (com todo o respeito aos profissionais que o fazem bem feito). Há que se pesar prós e contras de modo bem parcimonioso. É frequente atender pessoas que procuram o consultório apenas para saber que não precisam de medicamentos.
Abraços,

Hamer

Eliane disse...

Oi Hamer!

Confesso que ao abrir o "Cabeças trocadas", não li até o final por ser muito longo (tinha outras coisas pra fazer!) e porque achei o assunto muito...médico! Algo que eu procuro esquecer quando estou no meu momento "internet"! Mas não pude resistir em clicar no adorável "Ruas paulistanas" e que após a sua leitura, fui obrigada a clicar em "Quem paga a conta?", também maravilhoso!
Aí já era, abri o email para não gastar mais que 2 minutos e lá estava eu lendo todos os textos do Hamer! E ainda com direito a resposta por email!
Já pensou em ser colunista da Folha? Prometo que faço a assinatura! hehehe

Bjs
Eliane

Menezes disse...

Caro Hamer

Meu wi fi aqui em Madri muito limtado näo tem permitido a leitura de seus textos
e respondo rapido antes que a conexäo caia. Fico só com o título: Cabeças
trocadas. Lí um belo romance metafórico,ambientado na Índia, com esse título, e
só por isso imagino seu texto. Como já disse, ou creio ter dito,sua vivência
psiquiátrica está abrindo uma carreira de escritor.

Até a volta e abraço

Menezes

Hamer Palhares disse...

Caro Menezes,

É este mesmo o romance que cito no texto, de Thomas Mann.
Abraços e até a volta.

Hamer

Paula Souza disse...

Caro Hamer,

Seu texto é surpreendentemente capaz de articular uma boa quantidade de conhecimento técnico a porções de sabedoria, um bocado de cultura geral e pitadas de bom humor.
Obrigada.
Você ganhou mais uma seguidora e entusiasta de uma carreira literária!

Abçs, Paula

Hamer Palhares disse...

Cara Paula,


Obrigado pelos comentários.
Fico feliz com sua presença por aqui!
Abraço,

Hamer