(Ou: "O dia em que o Google quebrou")
"Mas como?" Em todos os idiomas, esta era a pergunta mais ouvida. E como não havia nenhum outro modo de se informar a não ser pelo próprio Google, ninguém sabia responder. Era o ano de 2032. Pensando bem, até que não faz tanto tempo...
Outros sistemas de informações, busca, relacionamentos e o escambau já tinham sido engolidos pela megaempresa virtual. Agora era o próprio Google que se implodira. Os mais tímidos, estupefatos, coçavam a cabeça: "Não havia qualquer concorrência, o que poderia ter acontecido?". Economistas diziam que a área estratégica devia ter empenhado zilhões de dólares em algum investimento de alto risco, por exemplo, em pesquisas espaciais ou em estações extra-terráqueas.
Todo absurdo fora redimido e era novamente bem-vindo. Os parâmetros volviam-se rotos. Naquele dia, os canais de internet sumiram no vácuo deixado pela estrela nova. Só se conseguia ler, por toda a parte: "Error Nº 404". A sobrecarga de acessos que vinha do Google, bruscamente desviada para outros sites, foi acusada pela pane no sistema. Sinais de rádio e TV, transmitidos via web, emudeceram. Aeroportos interditados. Só restava o apelo ao velho boca-a-boca. Ressuscitaríamos?
Ninguém entendeu porque a prefeitura decidiu que a feira de rua não ocorreria naquela quinta-feira. Muita gente sem pastel pôs-se a bradar de fome e de raiva. "Agora qual seria a próxima coisa a se cortar? O ar?" Muita verdura boa foi usada na guerra dos feirantes com a polícia e as casas do entorno ficaram manchadas de tomate, nacos de melancia, giló e da indignação dos garis.
Helicópteros sobrevoavam a cidade em trajetórias atípicas, pois que ninguém sabia ao certo quantas destas máquinas estavam nos céus ao cair da tarde. Os sistemas de localização "GPS-Pro V" baliam em louca algazarra e apenas mandavam mensagens de: "Recalculando a rota". Coube aos aventureiros abrirem bem os olhos, tanto no chão quanto no ar. Coisa que não faziam, ao que se pôde apurar, há anos.
Bolsas de Valores fechadas. Havia grande suspeita de manipulação de informações e de dados. Os sistemas de BackUp on-line poderiam ter sido corrompidos e saqueados? Experts foram procurados, mas ninguém queria atender telefonemas, pois os identificadores de chamadas apenas mostravam: Desconhecido. Era uma época em que todos temiam muitíssimo o desconhecido.
Evandro, educador, sociólogo e professor de violão, regozijava-se. "Quero ver como é que vão se virar agora!". Reclamava de tudo em seu videoblog que era acompanhado por mais de 200 alunos, e que, paradoxalmente, lhe rendia um dinheirinho extra, via Google-AdSense. Vociferava absurdos, acusava a tecnologia de inimiga da real comunicação, jargão repetido há meio século, reabilitado em sua voz rouca a la Tom Waits. Ao que se sabe, tivera uma grande frustração num relacionamento via GoogleDating. A namorada o traíra com um sujeito que conhecera no mesmo canal e que, por coincidência ou sincronicidade, era seu amigo de infância. Foi para seu estúdio e pôs-se a recordar riffs de uma banda esquecida chamada Led Zeppelin. Aquele era seu dia de glória. Sem alunos on-line, sem testemunhas ou Google Earth: deleitou-se em prato frio.
Jonathan Carter Jr. Nerd à décima segunda potência. Este garoto australiano de 16 anos já havia sido acusado por uma série de invasões de instituições respeitáveis como Apple, ONU e Pentágono e era um dos grandes suspeitos - mas o menino havia sido internado há três semanas por abuso de Crystal. Poderia ter sido o governo chinês? O medo vermelho tomou conta do presidente americano que veio a público manifestar-se. Afirmava que as causas seriam reconhecidas e os responsáveis, punidos: "Custe o que custar". O mundo, mais uma vez, estava em pé de guerra.
Naquele dia, Joana não teve como registrar a queixa na delegacia da mulher, pois o "sistema estava fora do ar". Que tentasse resolver a pendenga de outro jeito ou voltasse amanhã, se fosse coisa séria. O marido bebera novamente e chegara em casa com os olhos esbugalhados de nervosismo e jurubeba. Não precisou de motivos para açoitá-la. Para ela, a coragem recém-adquirida não levou a nada de novo. Tomou a pane como uma sinal de que, uma vez mais, deveria resignar-se. No escuro, sua face tornava-se aliviada enquanto assobiava um samba antigo "Camisa Amarela". Dormiu com ele na cabeça, como se fosse um mantra, um "Pai Nosso". Uma conexão que permanecera íntegra.
Marcelo e Priscila. A esta altura, não é preciso dizer como se conheceram. Priscila o esperava com uma receita de risoto que encontrara na internet. No meio do preparo, a internet "deu pau". "E agora? Tô frita!" Telefones mudos. Marcelo chega. Priscila - depois de esconder a receita pela metade na geladeira - argumenta que estava indisposta. "Melhor pegar uma pizza, dar uma volta". Cidade parada, semáforos cegos. Pizzarias, lanchonetes, padarias 24h: um longo blackout. Nenhum disque-qualquer-coisa. No único semáforo semi-vivo do bairro pararam o carro. Seus olhares se entrecruzaram no fundo da alma pela primeira vez. Aterrorizaram-se. Marcelo estacionou o carro uns vinte metros adiante. Ali mesmo, no banco de trás, amaram-se. Esfomeados. À moda antiga.
10 comentários:
Hamer querido! Bom dia!!!
Sou suspeita a dar minha opinião, porque este texto toca profundamente minhas raízes do homem primitivo....do telefone preto....da TV preto e branco das tardes da jovem guarda...e logo em seguida para os mais espertinhos dos grandes festivais da Record...onde fazíamos nossas apostas das musicas...quem será que ganha...Ponteio?Para dizer que não falei das Flores...a Banda...etc; fila do banco na época do Brasil,Bradesco,Cx Econonomica Federal eram os "musts" da época,do telegrama, da carta, do bilhete que esperavamos no portão muitas vezes de forma vã,da máquina de escrever Remington na qual fiz tentativa de aprender datilografia...ficava treinando feita uma besta x palavras por minuto nem lembro mais....da propagada da Cica e do cobertores Paraybana era moda na década de 1969...Meu Deus nem parece que já faz tanto tempo...o que será que é o tempo????? Ao que me consta...ninguém deixava de se comunicar, as notícias sempre chegavam...as contas (quem desejava pagar..) eram pagas e assim por diante.
Acho que você poderia acrescentar também a pane bancária e na bolsa. de valores..ontem por coincidência passei no Bco do Brasil e estava "sem o famoso sistema" que quando cai deixa todo mundo atordoadissimo....
Bjs
Eroy
Eroy,
Que saudades desta época...
Por sorte, as músicas continuam tão vigorosas quanto antes.
Bj,
Hamer
Meu grande amigo de infância !!!
Espero que continue escrevendo mais e mais....pois aguardo a publicação de seu livro de crônicas !!!
Parabéns pelos textos !!!!
Um GRANDE abraço.
ADELINO.
Adê,
Espero que até lá não ocorra nada semelhante ao que aconteceu com o prof. de sociologia.
Grande abraço, bom te ver por aqui.
Hamer
Muito bom!
Beijos,
Ana
Oi Hamer!
Lindo texto!
Por mais que a internet tenha se consolidado, nada substitui o prazer de ler um jornal, uma revista ou um livro!
Bjs
Oi Hamer,
Otimo saber que meu amigo psiquiatra, mergulhador, também é um excelente escritor!!
Lindo texto!! Muito rico e dinâmico!!
Aparece pra mergulhar com a gente de novo!!!
Todos estamos com saudades!!
beijos,
Ana
Gente, que engracado... "Marcelo e Priscila"?
Muito boa, Hamer... os desenhos tb sao seus?
Ola, Karyna,
Os desenhos não são meus, são do próprio layout do Blog.
Abraço,
Hamer
Amar-se no banco de trás.
De um carro, uma já velha tecnologia.Toda tecnologia será um dia velha.
E não há de surgir nenhuma que não sirva vez ou outra a nossos velhos instintos...
Um grande abraço,
Chuí
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