5.10.10

Cachecol


(Ou: “Momentos de pico”)


Um momento de pico.  Uma epifania talvez. Pode ser uma viagem, uma leitura, um chá  da tarde. Pode ser um pensamento novo ou uma comida de que se gosta. Tomar uma água de coco na praia, andar em silêncio ao lado do seu pai. Abraçar sua sobrinha, ver seu videoclip preferido. Qualquer coisa simples quando se rompe, súbito, o véu da mesmice e se percebe a intensidade que pode haver na experiência absurda de estar ali. Para que serve?  Para indicar caminhos.  Para mostrar que a vida, o significado, se é que há, é estarmos vivos.  Um momento de pico serve para ser sentido, saboreado até a última gota, e mais nada.



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Era uma praça numa cidade distante, e o sabor da comida brasileira, depois de tanto tempo, na forma de pão de queijo e guaraná Antarctica, eram uma espécie de alento. Pediu uma cerveja irlandesa, de sabor forte e apoiou-se numa das pilastras que seguravam o teto do pequeno coreto.  Era um música escocesa mas parecia um mantra indiano: pensava quais os elementos que compõem estas sensações estranhas que as canções despertam.  Contava a história de um amor desfeito pela guerra.  Dois violonistas se esmeravam para reproduzir cada detalhe do arranjo.  Começou a chuviscar.  Mordeu o último pedaço do pão de queijo.  Pensava: quando voltarei para minha casa?  Será que estarão todos bem? A lembrança de tantos acontecimentos conjugados com a melodia triste teciam a trama donde seu sentimento de pertencimento lhe indicava o caminho: “Volte!”  Sem avisar a ninguém, desembarcou na cidade de Fortaleza na antevéspera do Natal.  Fazia um calor imenso.



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Tocava uma música dos Rolling Stones, “As Tears Go By”, numa versão de Tim Ries. Jonas, um neo-resgatado, se lembrava de Adriana.  Era uma espécie de revelação, todos os nomes de mulheres expostos numa só palavra. Impressionante a força deste nome na mente de Jonas: Adriana.  Na última vez que se encontraram perceberam que havia mágica no ar. Sem maiores delongas, após uma estúpida descoincidência de anos, sintonizaram-se. E entenderam o poeta Octavio Paz: “a pessoa amada é a desconhecida e a reconhecida, abismo e lar”.



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O que João Henrique fazia com seu próprio corpo?  Jogando aquela poeira branca para dentro de si, uma nuvem de artifícios andina.  Sentia-se mal.  E o pior do mundo era sentir aquele arrependimento que nunca se esgotava e que se espraiava em tédio, raiva, oscilações de humor.  Eis o fator de revolução pessoal que o salvou: o nascimento do filho.  Percebeu que precisava por-se de pé para cuidar dele.  E o mesmo pensou, sem qualquer pensamento, o pequeno Gustavo, em seus poucos dias de bebê: “preciso dar um jeito neste velho”.  Gustavo no colo de João Henrique, um amálgama cambaleante e em busca de vida e equilíbrio. 



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Visitavam um monumento que se situava entre a história e a pré-história.  Pedras empilhadas sobre si mesmas.  Stonehendge.  Como foi feito? E por quê?  Ninguém sabia ao certo explicar.  Algumas evidências apontavam para uma construção religiosa, outras para uma espécie de observatório ou laboratório de astronomia. Uma outra interpretação rezava que se tratava de um monumento para enaltecer a grandeza do homem e que, portanto, teria fins políticos.  Quando foi que se desvencilharam, de cada ato humano, a relação íntima entre religião, política e ciência?  Talvez aqueles que o construíram quisessem nos alertar justamente disto: que o ser humano é capaz de coisas grandiosas e que as divisões são frutos da mente e não da realidade.  Denise, Nani e Fabrice voltavam da pequena viagem e falavam do rompimento estúpido de uma amizade que se deu por conta de um objeto material.  Uma confusão até difícil de se explicar.  Nani argumentava que amigos ficam furiosos um com o outro, xingam, mas os laços não se rompem.  Fabrice dizia que, resumindo, era uma coisa triste.  Denise trazia lembranças de uma fase onde as coisas eram mais simples, longe das grandes e das pequenas divisões causadas pela humanidade, como Stonehendge.



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Decidiram que ficariam naquele restaurante mesmo.  Era um dos melhores portenhos e ouviram falar que a carne era excepcional.  Antônio, decidiu, já que era a comemoração do aniversário do tio, autorizar o exagero: reuniram-se para apoiá-lo nos momentos pré-cirurgia.  Mas reuniram-se, muito mais, mesmo, por reunirem-se. A noite era perfeita, temperatura e brisa, uma caminhada até o restaurante à beira do rio.  Ergueram suas taças e fizeram pedidos em silêncio.  Eram seis e pareciam mais, pois cada um carregava seus ausentes.  O maitre aconselhou enfático: “Ojo de bife: no hay mejor”.  Esbaldaram-se.  A certa altura a tia falou, saudosista, para Antônio: “Este cachecol quem fez foi sua mãe.  Bonito, não?”  Nem era tão bonito, pensou.  Mas ela estava lá, etérea, e a tia ficou brincando com o cachecol por uns instantes. Brindaram novamente e o garçom trouxe a impecável torta de maçã. Ao deitar-se, cogitou: algumas noites deveriam se cristalizar - em açúcar, em neve ou em lembranças - simplesmente para reter o sabor de cada elemento. Antes de adormecer, passou-lhe na veneta: “Se um dia eu perder um amor verdadeiro ou uma amizade visceral, pela única razão maior e inelutável, quero, antes, ser o cachecol que as mãos que o embalam”.



2 comentários:

Anônimo disse...

Hamer,
O poeta, psiquiatra e cronista da cidade.
Fiks

Anônimo disse...

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