Como começar a contar uma história? Uma auto-biografia, por exemplo?
Eis o dilema que enfrentava Carla. Começava a escrever a sua história e não sabia por onde começar. Escolher um começo era tão ou mais importante que escolher o final.
Cada palavra era um alçapão, cada palavra um interruptor. Não gostava desta palavra: “interruptor”, mas ela lhe veio à mente e o que fazer? Seria desonesto escondê-la... Uma história bela precisa de palavras belas, mas precisa de palavras que pulsem, ainda que sem brilho. Queria trazer a verdade na sua história, mas não queria perder a lindeza, a vaidade da prosódia. Como se preciso fosse ecoar música na sua escrita, como se quisesse embalar um idoso em suas tardes intermináveis rumo a fenecer.
Temia a verdade ainda que a buscasse com lamparina a óleo. A verdade traz consigo a dor, como um Buda que descobre que viver é, também e principalmente, sofrer.
Como juntar as pontas perdidas da sua própria história? Estava com sono, mas contar a história era um modo de se fazer embalar em seu próprio novelo de dramas, ficções e comédias. Via nas suas pálpebras fechadas o seu filme embaralhar-se com todas as histórias mitológicas e do cinema antigo. Via em preto e branco, e ouvia o trique-trique de um filme de oito milímetros.
Carla era uma mulher dentro de um homem dentro de uma mulher. Sua verdade era como buscar o núcleo perdido da cebola. Era buscar um grau interno, mais íntimo de si, onde ela mesma passaria a não se reconhecer. Mas queria começar a contar as histórias, apesar do sono e do efeito soporífero do cansaço.
Achava que, neste lusco-fusco, encontraria o meio caminho, a fresta onde a verdade se reencontraria com a beleza.
Tinha perdido por completo o fio da meada. Mas gostava de sua nova posição, pois isto permitia-lhe andar a esmo sobre sua própria lama, sob o céu nublado de seus medos e prazeres. E sentia-se liberta. Começava a sorrir, pelo canto da boca, onde ocorrem os sorrisos dos descobrimentos espantosos e marotos de si mesmo. Ao sorrir, Carla reconhecia exércitos de pessoas estrangeiras e de antepassados que habitavam em si mesma. Era uma experiência excitante e tenebrosa. Passava a mão para reconhecer o interior musgoso de suas cavernas e corria endoidecida entre os arbustos donde a luz lhe chegava mansa e desconexa.
Talvez já tenha entrado no sono, talvez esteja anestesiada por alguma droga alucinógena ou pela fome. Lembra que não comera desde o começo da manhã. Era tarde da noite.
Não levantará para atender o telefone ou para colocar o lixo na rua. O cãozinho já parara de latir, ciente que dormiria no frio do lado de lá da porta. Importa-lhe, agora, o lado de cá da porta. Mas há sempre outro lado de cá, cada vez mais interno, cada vez mais e menos misterioso. Ao desafiar sonhos, premonições e intuições, acredita Carla, estará preparada para sentar-se ao banquete da verdade. A cada vez que se despe encontra um manto ainda mais pesado de recordações, de ressentimentos, de vitórias e frustrações.
Quer se livrar de tudo, mas já não pode. Quer ligar para suas amigas de infância, mas a conexão caiu dentro de si mesma e ela não sabe quem foram seus queridos e seus inimigos. Quer amar, mas o coração sente um disparo ímpar: Carla não sabe se já amou alguma outra vez. E o que é amar?
Pensa que sua auto-biografia vai de mal a pior... Começou pelo mais desconhecido de si e percebe, a partir de agora, que o que viveu não se deve contar. Esqueceu-se por completo daquilo que viveu.
Começa a pensar que talvez esteja doente, à beira da morte. Mas como pode a morte se tornar tão libertadora? Como pode sentir-se tão leve e tão despretensiosa? Ela que sempre foi tão desejada, vaidosa e incontrolável? Ela que, tantas vezes, pensou-se no centro de si mesma, que fora tantas vezes procurada para auxiliar em dramas alheios, em confissões de amigas desesperadas, em apoiar o vizinho que queria fugir de casa e a prima que se negava a enfrentar o mundo.
Carla é o desejo transcrito numa passagem bíblica, é o Cântico dos Cânticos. Carla é um poema de Adélia Prado. E a história que todos os seres humanos viveram. Traz em si o mistério que merece ser contado e a futilidade das vidas de todos nós. Sua vida é o cair da guilhotina sobre o seu próprio criador e a multidão a louvar a engenhosidade da máquina.
Mas, a cada linha, reconhece que não é nada disso. É sempre outra coisa, como cada um de nós. E é o escrever em circunvoluções, é o rodear de um gato manhoso nas pernas da avó a preparar o almoço. E o emocionar-se e o dispensar de cada uma das metáforas que definem o vivido e o não-vivido.
Carla é o mendigo que ronda os sacos de lixo buscando latas de alumínio. É o que há dentro da mulher que habita o homem da banca de temperos da feira livre. É um fractal de um livro de desenhos e o rebobinar de uma fita cassete mastigada. Está em cada coisa e não se dá a conhecer.
Mas é uma só pessoa. Como pode? E como pôde?
Há quem acredite que o mistério do universo se resuma a uma bolha de sabão e há quem acredite que não. Carla é a pessoa que duvida. Ela mesma, um habitante solitário nos anéis coloridos da face de uma bolha de sabão.
Busca novamente sua história, mas é como tentar recuperar um rádio do pós-guerra que caiu no desembarque de um avião de carga: não há sintonia que funcione.
Lembra de alguns acontecimentos mas não sabe ao certo como atribuir-lhes importância. Pensa que, talvez, sua auto-biografia seja o mundo a começar e que seja o dia de amanhã, o raiar desta noite insone que decidiu estagnar-se no mais escuro e silencioso breu. Procura barulhos de grilos ou o ronronar de motores de carros, choros de crianças com dor de ouvido, mas nada lhe vem em seu resgate. Um silêncio único acompanha o frio que lhe sobe a espinha: em que limbo se perdeu?
Carla acredita nas experiências de quase morte e duvida das de quase vida. É intolerante com tantas pessoas que vivem no porão de si mesmas. Já se sentiu um zumbi e sabe o que significa ressuscitar. A cada dia, a cada café da manhã sente que veio do Hades com a promessa de desta vez fazer diferente, mas é sempre tudo tão igual: gostaria de viver sem ter que contar, sem ter que impressionar ou sem que sua história fosse narrada, mas e o compromisso ético? Plutão a libertou com a missão de contar a si mesma a sua jornada. E isto a faz sentir tão dolorida como se um naco de carne lhe fosse arrancado do dedo a cada noite.
Esqueça Carla. Ela não é nenhum de nós. É talvez, uma provocação para escrita, uma escala para ser tocada ao violino. O que importa - mesmo - é o seguinte: se, por um único momento você pudesse juntar a história da pessoa amada à da pessoa idealizada, e trocar todas as indefinições da fantasia e do desconhecido por um café com pão de queijo numa estação de trem por meia hora com quem você realmente gosta, o que diria? Você tornaria a acreditar que o mistério do mundo está numa bolha de sabão? Se você tivesse o direito de sair de sua bolha por esta única e finita meia hora: durante esta pequena conversa, o que diria? O que é mais importante, afinal: a história vivida, ou a que ainda não se escreveu?
Carla é cada um de nós e por isto não se dá a conhecer. Carla é uma noite de insônia, uma semana de insônia, uma vida de insônia. E quebrar o despertador com um soco. É uma segunda-feira com sono e o perder-se entre os lençóis da lascívia. É um filme pornográfico rodado ao som de um minueto de Bach. A improbabilíssima moeda que cai de pé: nem cara, nem coroa... É, finalmente, o convite a reescrever a história. O pano quente com que se limpam as mãos e se reaviva a face num restaurante japonês. Carla é o ardido que dá na língua quando, desavisadamente, se morde pimenta forte - não há sede nem água que bastem...
9 comentários:
Hamer,
Cada dia tenho mais certeza que Hamor se escreve mesmo com H.
Estou emocionadíssima, debulhando em lágrimas...
Concordo, "Carla é cada um de nós", pois já lhe disse que não é só a ela que você faz feliz.
Obrigada Hamer!
Cacá
Adorei o texto!!!
Abraço,
Guirreh
Adorei o texto!!!
Abraço,
Guirreh
Hamer
Chama a atenção especialmente, Carla não saber se já amou alguma outra vez, e a impressão de que
o texto foi escrito por uma mulher dentro de um homem, sobre o homem de dentro de uma mulher...
Abraço
Menezes
Depois dessa introspecção, há o resgate final como uma explosão de sentidos e alívio, tal qual pimenta forte.
Adorei!
Rosa
Hamer...
Carla, um misto de complexidade e simplicidade.
Obrigada por fazer minha amiga feliz!!!
Michelle
Dr. Hamer, tudo bem? So urepórter e estou fazendo uma matéria sobre o estresse profissional na carreira do médico e gostaria de contar com a sua opinião e visão acerca do assunto.
Gostaria de entrar em contato.
Caso prefira me escrever, o meu email é o pablolima@editoradoc.com.br
grato. abraços.
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