26.9.10

Pimenta Forte


Como começar a contar uma história?  Uma auto-biografia, por exemplo?
Eis o dilema que enfrentava Carla.  Começava a escrever a sua história e não sabia por onde começar.  Escolher um começo era tão ou mais importante que escolher o final.  
Cada palavra era um alçapão, cada palavra um interruptor.  Não gostava desta palavra: “interruptor”, mas ela lhe veio à mente e o que fazer?  Seria desonesto escondê-la... Uma história bela precisa de palavras belas, mas precisa de palavras que pulsem, ainda que sem brilho.  Queria trazer a verdade na sua história, mas não queria perder a lindeza, a vaidade da prosódia.  Como se preciso fosse ecoar música na sua escrita, como se quisesse embalar um idoso em suas tardes intermináveis rumo a fenecer.  
Temia a verdade ainda que a buscasse com lamparina a óleo.  A verdade traz consigo a dor, como um Buda que descobre que viver é, também e principalmente, sofrer.  
Como juntar as pontas perdidas da sua própria história?  Estava com sono, mas contar a história era um modo de se fazer embalar em seu próprio novelo de dramas, ficções e comédias. Via nas suas pálpebras fechadas o seu filme embaralhar-se com todas as histórias mitológicas e do cinema antigo.  Via em preto e branco, e ouvia o trique-trique de um filme de oito milímetros.  
Carla era uma mulher dentro de um homem dentro de uma mulher.  Sua verdade era como buscar o núcleo perdido da cebola.  Era buscar um grau interno, mais íntimo de si, onde ela mesma passaria a não se reconhecer.  Mas queria começar a contar as histórias, apesar do sono e do efeito soporífero do cansaço.  
Achava que, neste lusco-fusco, encontraria o meio caminho, a fresta onde a verdade se reencontraria com a beleza. 
Tinha perdido por completo o fio da meada.  Mas gostava de sua nova posição, pois isto permitia-lhe andar a esmo sobre sua própria lama, sob o céu nublado de seus medos e prazeres.  E sentia-se liberta.  Começava a sorrir, pelo canto da boca, onde ocorrem os sorrisos dos descobrimentos espantosos e marotos de si mesmo.  Ao sorrir, Carla reconhecia exércitos de pessoas estrangeiras e de antepassados que habitavam em si mesma.  Era uma experiência excitante e tenebrosa.  Passava a mão para reconhecer o interior musgoso de suas cavernas e corria endoidecida entre os arbustos donde a luz lhe chegava mansa e desconexa.
Talvez já tenha entrado no sono, talvez esteja anestesiada por alguma droga alucinógena ou pela fome.  Lembra que não comera desde o começo da manhã.  Era tarde da noite.  
Não levantará para atender o telefone ou para colocar o lixo na rua.  O cãozinho já parara de latir, ciente que dormiria no frio do lado de lá da porta.  Importa-lhe, agora, o lado de cá da porta.  Mas há sempre outro lado de cá, cada vez mais interno, cada vez mais e menos misterioso.  Ao desafiar sonhos, premonições e intuições, acredita Carla, estará preparada para sentar-se ao banquete da verdade.  A cada vez que se despe encontra um manto ainda mais pesado de recordações, de ressentimentos, de vitórias e frustrações.  
Quer se livrar de tudo, mas já não pode.  Quer ligar para suas amigas de infância, mas a conexão caiu dentro de si mesma e ela não sabe quem foram seus queridos e seus inimigos.  Quer amar, mas o coração sente um disparo ímpar: Carla não sabe se já amou alguma outra vez.  E o que é amar?
Pensa que sua auto-biografia vai de mal a pior... Começou pelo mais desconhecido de si e percebe, a partir de agora, que o que viveu não se deve contar.  Esqueceu-se por completo daquilo que viveu.
Começa a pensar que talvez esteja doente, à beira da morte.  Mas como pode a morte se tornar tão libertadora?  Como pode sentir-se tão leve e tão despretensiosa?  Ela que sempre foi tão desejada, vaidosa e incontrolável?  Ela que, tantas vezes, pensou-se no centro de si mesma, que fora tantas vezes procurada para auxiliar em dramas alheios, em confissões de amigas desesperadas, em apoiar o vizinho que queria fugir de casa e a prima que se negava a enfrentar o mundo.
Carla é o desejo transcrito numa passagem bíblica, é o Cântico dos Cânticos. Carla é um poema de Adélia Prado.  E a história que todos os seres humanos viveram.  Traz em si o mistério que merece ser contado e a futilidade das vidas de todos nós. Sua vida é o cair da guilhotina sobre o seu próprio criador e a multidão a louvar a engenhosidade da máquina.
Mas, a cada linha, reconhece que não é nada disso.  É sempre outra coisa, como cada um de nós.  E é o escrever em circunvoluções, é o rodear de um gato manhoso nas pernas da avó a preparar o almoço. E o emocionar-se e o dispensar de cada uma das metáforas que definem o vivido e o não-vivido.
Carla é o mendigo que ronda os sacos de lixo buscando latas de alumínio.  É o que há dentro da mulher que habita o homem da banca de temperos da feira livre.  É um fractal de um livro de desenhos e o rebobinar de uma fita cassete mastigada.  Está em cada coisa e não se dá a conhecer.  
Mas é uma só pessoa.  Como pode?  E como pôde?
Há quem acredite que o mistério do universo se resuma a uma bolha de sabão e há quem acredite que não.  Carla é a pessoa que duvida.  Ela mesma, um habitante solitário nos anéis coloridos da face de uma bolha de sabão.  
Busca novamente sua história, mas é como tentar recuperar um rádio do pós-guerra que caiu no desembarque de um avião de carga: não há sintonia que funcione.
Lembra de alguns acontecimentos mas não sabe ao certo como atribuir-lhes importância.  Pensa que, talvez, sua auto-biografia seja o mundo a começar e que seja o dia de amanhã, o raiar desta noite insone que decidiu estagnar-se no mais escuro e silencioso breu.  Procura barulhos de grilos ou o ronronar de motores de carros, choros de crianças com dor de ouvido, mas nada lhe vem em seu resgate.  Um silêncio único acompanha o frio que lhe sobe a espinha: em que limbo se perdeu?  
Carla acredita nas experiências de quase morte e duvida das de quase vida. É intolerante com tantas pessoas que vivem no porão de si mesmas.  Já se sentiu um zumbi e sabe o que significa ressuscitar.  A cada dia, a cada café da manhã sente que veio do Hades com a promessa de desta vez fazer diferente, mas é sempre tudo tão igual: gostaria de viver sem ter que contar, sem ter que impressionar ou sem que sua história fosse narrada, mas e o compromisso ético?  Plutão a libertou com a missão de contar a si mesma a sua jornada.  E isto a faz sentir tão dolorida como se um naco de carne lhe fosse arrancado do dedo a cada noite. 
Esqueça Carla.  Ela não é nenhum de nós. É talvez, uma provocação para escrita, uma escala para ser tocada ao violino.  O que importa - mesmo - é o seguinte: se, por um único momento você pudesse juntar a história da pessoa amada à da pessoa idealizada, e trocar todas as indefinições da fantasia e do desconhecido por um café com pão de queijo numa estação de trem por meia hora com quem você realmente gosta, o que diria?  Você tornaria a acreditar que o mistério do mundo está numa bolha de sabão?  Se você tivesse o direito de sair de sua bolha por esta única e finita meia hora: durante esta pequena conversa, o que diria?  O que é mais importante, afinal: a história vivida, ou a que ainda não se escreveu?  
Carla é cada um de nós e por isto não se dá a conhecer.  Carla é uma noite de insônia, uma semana de insônia, uma vida de insônia. E quebrar o despertador com um soco. É uma segunda-feira com sono e o perder-se entre os lençóis da lascívia. É um filme pornográfico rodado ao som de um minueto de Bach. A improbabilíssima moeda que cai de pé: nem cara, nem coroa... É, finalmente, o convite a reescrever a história. O pano quente com que se limpam as mãos e se reaviva a face num restaurante japonês.  Carla é  o ardido que dá na língua quando, desavisadamente, se morde pimenta forte - não há sede nem água que bastem...

9 comentários:

Unknown disse...

Hamer,

Cada dia tenho mais certeza que Hamor se escreve mesmo com H.
Estou emocionadíssima, debulhando em lágrimas...
Concordo, "Carla é cada um de nós", pois já lhe disse que não é só a ela que você faz feliz.
Obrigada Hamer!
Cacá

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Adorei o texto!!!

Abraço,


Guirreh

Anônimo disse...

Adorei o texto!!!

Abraço,


Guirreh

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Hamer

Chama a atenção especialmente, Carla não saber se já amou alguma outra vez, e a impressão de que
o texto foi escrito por uma mulher dentro de um homem, sobre o homem de dentro de uma mulher...

Abraço

Menezes

Anônimo disse...

Depois dessa introspecção, há o resgate final como uma explosão de sentidos e alívio, tal qual pimenta forte.
Adorei!

Rosa

Michelle disse...

Hamer...
Carla, um misto de complexidade e simplicidade.
Obrigada por fazer minha amiga feliz!!!

Michelle

Pablo Lima disse...

Dr. Hamer, tudo bem? So urepórter e estou fazendo uma matéria sobre o estresse profissional na carreira do médico e gostaria de contar com a sua opinião e visão acerca do assunto.

Gostaria de entrar em contato.
Caso prefira me escrever, o meu email é o pablolima@editoradoc.com.br

grato. abraços.