22.7.10

Tequila e Vinho

Uma página em branco:  infinitas possibilidades.  Uma mulher digita com os olhos fechados: Nathalia.  Pensa nos jogos de futebol e nas esperanças de tantos brasileiros depositadas em vão numa esquadra que, para a maioria, decepcionou.
Seu primeiro pensamento: quanta bobagem!  Tantos assuntos mais importantes: a eleição chegando e tanta gente querendo “capitalizar” sobre o sucesso ou fracasso da seleção.  O Brasil é tão bom quanto a seleção que o representa, é o que vai no inconsciente coletivo, e, mesmo para quem acredita nisto, é o que se percebe na atmosfera, no movimento dos açougues, nos disparos de foguetes.  Para os céticos incorrigíveis, vale a pena dar uma olhada nos bares cheios, nas ruas em festa, nas compras que cresceram nos cartões de crédito.  Camisetas, televisores e um sofá novo onde toda a família caiba.  E um gaitista que ajuntou seu dinheiro para comprar uma coleção de boas cervejas holandesas.  E que se sentiu culpado por tomá-las no dia do jogo do Brasil, pois viu nisto um sinal de mau agouro.  
Um polvo que prevê o futuro.  A humanidade já não acredita mais em nada, daí que resolveu, curto-circuito, acreditar em tudo.  E um bando de alemães querem devorar o polvo. Um grupo de espanhóis quer enaltecê-lo, especialmente se sua seleção se sagrar campeã.  O melhor de tudo: continua a humana busca pela previsão do futuro, o que é, de um modo inacabado, um alento para a geração que só quer o presente intensificado do consumismo e do utilitarismo.  
E houve quem notasse no polvo profeta a possibilidade de um maior reconhecimento de formas diferentes de inteligência e de integração do homem com o cosmos. Pastores que buscaram mostrar que o polvo era um enviado de Deus, outros demonstraram justamente que era a pura expressão de satanás, em sua amorfidade provocativa.  Houve quem entendesse o polvo de um modo neurolinguístico: os atletas acabariam por jogar melhor se a previsão do polvo, dada como infalível, incluísse seu sucesso, ao passo que a outra equipe já entraria em campo cabisbaixa.
E mais (sempre há mais): a paixão renovada do homem pela bola, o descanso de tantas guerras pequenas e grandes.  Em campo não interessa quem tem carro ou quem tem família, quem é amado ou quem já foi preso por desacato policial.  Há os descamisados e o time com camisa.  Há europeus e africanos.  Há o universo numa pelota de tecidos sintéticos que corre mais que deveria, mais do que os goleiros gostariam, mais do que os atacantes possam prever.  No futebol é possível perceber alegria de modo direto: ainda quando se perde, o homem está ali por completo.  Tanto que os comentaristas só culpam o time que “não deu o sangue”.  É preciso suar a camisa.  É preciso ser intenso no momento em que a vida está acontecendo. Nos 90 minutos (e só neles?!?).  
Juan, um menino mexicano sonha em ser um jogador de futebol.  Seu primo vem da cidade grande com a bola cujo nome significa “celebrar”.  Ele, por ser mais novo, fica no gol.  E acaba se dando bem naquela posição.  Além de que se cansa menos.  Aprende o que significa “tomar um frango”.  É a situação do homem no mundo: mesmo quando faz tudo certo, alguma coisa fora de seu controle sai errado.  Faz tudo errado mas alguém faz ainda pior e acaba se sagrando vitorioso.  Aprende a ser delicado e vigoroso, ao fazer um passe em profundidade e a trabalhar em equipe.  Perde a cabeça por um instante e é visto como um traíra por anos a fio.  Lições que servem para o homem comum?
Para quem não sabe jogar futebol, fica a cerveja gelada ou o chá com pipoca, fica o café com biscoitos, o churrasco com caipirinha, a feijoada com os amigos, a camiseta da Copa passada que ficou apertada na barriga com o passar do tempo.  E tanta gente que prometeu que nunca mais torceria para a seleção brasileira tendo que desfazer as promessas às escondidas.  Na hora, não tem jeito, é irracional, tudo bem, sabe-se que é. É até um pouco ridículo o coração acelerar assim desta forma, para uma mulher que nem se interessa tanto por esportes, para um homem que tem tantos compromissos no mercado imobiliário e para um jovem que tem que estudar para o vestibular.  Mas é como é o coração, terra de ninguém: ele se apaixona quando quer, por quem ou por quê quiser.   Eros nasce e morre de modo imprevisível, mortal e imortal a um só gole. Pouco ou nada podemos a favor ou contra.
Há quem prefira pensar filosoficamente sobre o futebol e aí não vê graça nenhuma.  Também pudera...  Até pensar sobre a felicidade pode nos distanciar dela.  É preciso se despojar para apreciar o futebol.  E quem não se lembra da sensação do seu time ganhar um campeonato importante?  E daquele gol improvável aos quarenta e tantos do segundo tempo?  É como se o mundo fizesse sentido por um minuto e meio.  É pouco tempo, mas em um mundo tão vertiginoso, é um milênio.

Nathalia, a mulher que escreve sobre futebol, e que pouco entende dos mistérios da Jabulani gostou do resultado da Copa.  Achou que o Brasil não merecia mesmo o título.  “Já temos muitos títulos, precisamos passar a estimar nosso país por outras virtudes, arrumar a casa de um outro jeito”.  Indigna-se com tanta injustiça a que é exposta a grande massa brasileira dos ônibus lotados, das filas dos serviços públicos, dos sem face.  Mas, também de um modo racional, sente um desabrochar no peito ao ver a camisa amarela em campo.  Lembra-se de quando criança, o avô que teve AVC apenas ia para a cozinha fazer pipoca, que era sua especialidade, como dizia o velho. E só nos dias de jogo da seleção brasileira.  Tamanha reverência tinha ascendência: o velho Ruy tinha visto jogar Rivelino, Garrincha, Pelé, Tostão, Zico, Éder, Falcão e Sócrates. Assim, para Nathalia, gostar de futebol é sua identidade em um nível que não consegue reconhecer qual seja, de seus mares mais profundos, onde habitam polvos e tubarões, abarcando suas esperanças mais requintadas e abrangentes.  
Conheceram-se em uma casa de salsa na cidade de Pucón, no Chile.  Ela era uma senhora desquitada, de seus 31 anos, que fazia sua segunda faculdade, desta vez Publicidade e Propaganda.  Parecia mais uma senhorita. Revelara-se infeliz com o Direito, pois sentia-se descrente com várias burocracias e procedimentos envolvidos no cotidiano da advocacia.  Ele era um comerciante.  Não falou de quê, mas também não era preciso: era só mais uma noite de inverno... Tinha dois anos a mais que ela, mas parecia bem mais - ela era muito bem cuidada e vaidosa.
Ela estava em férias de julho com a família, era a terceira vez que ia para o Chile, e a primeira vez na belíssima região da Patagônia.  Começava a apreciar vinhos, mas se aborrecia muito com toda a “academia” do vinho: ler o rótulo todo, cheirar a tampa e a pequena provinha na taça, depois esperar todo mundo estar servido para completar a taça...  E todos a fingir um ar de sabe-tudo.  Só depois arriscar um palpite: “madeira”, “chocolate”, “me parece frutado” e, na dúvida, “alcaçuz”.  Mal sabia que, com o tempo, sentiria saudades daqueles rituais.
Ele gostava mesmo era de caiprinha.  Naquela noite, no entanto, prefiriria tequila.  Ela decidira acompanhar.  Tinham se mirado por alguns minutos e ele não sabia como abordá-la.  Ela percebeu e, sutilmente, abriu a guarda sem deixar que ele percebesse.  Ficou mais próxima dele após fazer uma parada estratégica no banheiro.  Aí, quando ela deixou a bebida na mesa ele percebeu que ela iria novamente ao bar e dirigiu-se para lá, em paralelo.  “Pena que não tem caipirinha aqui, né?” “Ah, você é brasileiro também?” “Si, e percebi que você também é, pois não pude evitar de ouvir um pedacinho da sua conversa”.  “É mesmo? E de onde eu sou?” “Acho que de Minas”. “Nossa!” “Como você sabe?” “Percebi pelo sotaque, já morei no Sul de MInas, em Caxambú, agora voltei para minha terra, Londrina, no Paraná, você conhece?”.  “Não, mas já ouvi falar bem, já Caxambú é perto da terra dos meus avós, São Lourenço”.  
Falavam do circuito das águas mas bebiam tequila e vinho.  Ele tinha uma loja de antiguidades e um sebo.  Ela brincou que ele gostava mesmo era de coisas velhas.  Ele disse que não era bem assim, era um negócio tradicional da família e teve que voltar da faculdade de veterinária, abandonar tudo e cuidar das coisas quando o pai adoeceu. Sim, o pai estava bem, obrigado por perguntar.
A conversa morreu ali mesmo.  Depois de meia hora ela tinha que ir embora com a família, ele ficava com um amigo com quem seguiria viagem de volta a Santiago para tomar o avião dali a dois dias.  Ela também viajaria dali a dois dias e, coincidência, estavam no mesmo vôo.
Conversaram no aeroporto, sentariam em poltronas distantes.  Mas, com algum arranjo, acabaram sentando-se um ao lado do outro.  O jornalzinho do avião falava sobre a Copa do Mundo. Ela torcia para o Atlético Mineiro, ele torcia para o Atlético Paranaense.  Os dois times estavam bem mal das pernas.  Nem conseguiram fazer piada sobre o assunto.  Natália falou das suas esperanças na Copa, e que sentia falta do Ronaldinho Gaúcho naquela convocação.  Ele concordou e acrescentou à sua lista: Ganso e, talvez, Neymar.
Nathalia e Rodrigo combinaram que se encontrariam para assistir pelo menos um jogo da Copa.  Ela estaria de férias na faculdade e ele poderia dar um jeito da cunhada, que estava desempregada, cuidar dos negócios por pelo menos um final de semana.  Ele sugeriu as oitavas de final.  Ela não sabia o que era aquilo, mas concordou como se soubesse e perguntou: e contra quem vai ser o jogo?  Ah, isto ainda não sabemos... Ela gostou do mistério. Mal imaginavam que seria contra o próprio Chile, donde traziam os olhos tão cheios de lagos, salsas e vulcões.
Parecia recatada e só quase no final do vôo falou que já havia sido casada, mas que já superara tudo e estava divorciada há mais de dois anos.  Ele também tinha se casado, só que duas vezes. Ela o olhou com um jeito mineiramente desconfiado e depois assentiu: “É, a vida é assim mesmo, né?”.  Concordaram.  O piloto avisou da chegada próxima, pegariam conexões diferentes dali em diante.  Mundos diferentes.  Ela sugeriu algumas dicas de marketing digital para ele.  Ele se interessou ou fingiu-se interessado.  Ela falou que tinha sido muito bom conhecê-lo.  Ele disse que ela tinha sido a melhor surpresa da viagem.
Acabaram não se reencontrando.  Um romance que não aconteceu porque ninguém arriscou nada.  Não havia nenhuma loucura ou enternecimento excessivo que os ligasse.  Como dizia Freud, é preciso algo paranóico para tecer uma trama ou uma filosofia.  Ali havia apenas um ponto de interrogação, mas faltava o espanto, faltava a exclamação.  e como sobrasse fôlego, o amor decidiu não acontecer.  De modo quase imperceptível, ao saírem do avião, concluíram: no amor, como no futebol, é preciso viver quase à beira de perder o fôlego.

2 comentários:

Karine Koller disse...

Olá, Hamer!
Gostei do texto, lembrou-me um poema de Pessoa. Beijos! Karine

Tenho tanto sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Fernando Pessoa

Fernanda Robert disse...

Belo texto!

polvo que preve o futuro, encontros, desencontros, emoções, coincidências...

"a emoção pura de um encontro, o deslumbramento de uma descoberta. Esse instante fugaz de silêncio anterior à palavra que vai ficar na memória como o rastro de um sonho que o tempo não aparagará por completo" (José Saramago)

bjo