7.7.10

Cozinhar

Ela já sabia das pequenas variações do tempo.  Foi cozinhando que aprendeu a por as rédeas no tempo.  “Faço o refogado quando o arroz já estiver crescendo”.  “Ponho uma linha de azeite de oliva para finalizar”. “Suco de meio limão para soltar”. Cozinhar abriu-lhe a visão para um contínuo diálogo interno. Foi assim que aprendeu, sem gurus ou feiticeiros, que havia uma vida interior, um mundo tão complexo quanto o visível.
E gostava mesmo era de preparar uma feijoada ouvindo Chico Buarque:  ele tinha dado toda a receita e ironizado o talento de tantas brasileiras na cozinha-símbolo de nossa mesticez... Quando o tempo estava úmido, o certo era aumentar um pouco a temperatura do forno para o pão chegar no ponto à mesa.  Economizou o que pode para comprar o melhor forno, o que vinha com um alarme e era mais robusto.  Ela ainda não sabia como domar completamente o tempo.  E por isto continuava cozinhando.
Irene era uma mulher desligada, avoada, como diziam os netos.  Dona Irene.  Ali ela era, sim, a dona. Aprendeu com o tempo que cozinhar era um ato de louvor.  E também um ato libidinoso. Percebia como as feições se mudavam, como se assanhavam e se acalmavam na mesa de jantar.  Aprendera com os pais a importância do almoço em família.  Lá aprendera as regras e a obedecer, bem antes de conhecer a palavra hierarquia.  O pai era quem dava a última palavra, mas era a mãe quem decidia sobre o que conversar.  Quando a conversa ficava tensa, Irene não sabia por que os pais decidiam que não era prosa para crianças participarem.
Ela aprendeu a dar nomes particulares aos pratos: "este é o arroz do tio Luiz, porque parece o cabelo dele". A criançada adorava.  “Aí vem o doce preferido do vô Ignácio”.   Irene sabia a preferência de cada um. Comer era uma diversão e também uma missa. Servir a preferência de alguém era homenagear, acarinhar, enaltecer, fortificar.  Era tudo o que muitos verbos unidos e bem conjugados não conseguiam fazer.
“Doce só depois da comida salgada”. “Não, você já comeu demais!”.  “Ah, mãe, só mais um bife!”.  “Passe o saleiro, por favor...”.  “Vamos agradecer esta comida e orar para que Deus dê alimento aos que têm fome...”,  “Vovó, o que é Deus?”,  “Deus é o papai do céu!”, “Ah, entendi...”.  Ali se revelavam e se ocultavam os grandes mistérios da vida.  
“Marly tá grávida, ouvi dizer...”, “Mas como!”, “Como?! Como você acha?”, “Você me respeite, ainda sou sua mãe!” “Parece que eles vão casar de bate pronto e morar na casa dos pais dele, em Minas”, “É, é a vida... Pelo menos estão indo para uma terra boa... Ah, estes moços, pobres moços...”. “Volte sempre, minha filha, a saudade cria monstros!”.  Ali se confidenciavam e se estiravam os pequenos deleites da vida.
Seu cantarolar era o resumo de sua sabedoria, valores, interpretações do mundo. Irene sabia que cantarolar mudava o sabor dos pratos.  Cantava baixinho, entre os beiços, só com a garganta vibrando.  E conversava com as plantas e com a comida. Irene era tudo ao mesmo tempo: mãe, filha, avó, cozinheira, cantora de seus pratos impecáveis.  Quando alguma coisa saía especialmente boa, ela brincava:  “Errei a mão! Igual a este não faço nunca mais!”.  


Enquanto rodava a colher de pau, eram gerações de mulheres cozinheiras, toda a sua ancestralidade que conduzia cada circunferência mínima, cada pitada de pimenta-do-reino.  Parece até que as receitas eram sopradas em sua imaginação.
Dona Irene parou de usar receitas com o tempo e guardou o livrinho que herdara de sua avó para uma geração vindoura:  “O melhor mesmo é não seguir receitas, elas te deixam muito aprisionada”.  Falava que era assim que todos deviam conduzir a vida, mas aguardava o momento certo para dar este conselho: “Senta aqui que hoje vamos ter uma conversa séria”.  E preparava o caminho com um chá de gengibre e hortelã, com um bom biscoito de polvilho doce.  Tudo era colhido na hora, feito na hora. E tudo perdurava por muito tempo, quando vindo de Irene.  As lembranças de Dona Irene não esfriavam.
Dona Irene encontrou seu verbo na vida e era este: cozinhar.  Dele resplandeciam tantos outros: viver, amar, festejar, acarinhar, compreender, ampliar, unir, louvar.  E dizia que cada um tinha que encontrar seu dom.  Que a vida só floresce mesmo em terra fértil.  Os conselhos de Irene eram simples demais para se fazerem entender em outra boca: era preciso a veracidade e o crédito de sua voz desobstinada e rouca de décadas.  
E Dona Irene aconselhava:  “Coma, menina, que é preciso comer para ficar forte”.  Quando dizia isto, o que recomendava, nas entrelinhas era:  “É preciso - para ficar forte - viver, amar, festejar, acarinhar, compreender, ampliar, unir, louvar”.  Irene também não dava outras receitas de felicidade, que para se ser feliz é preciso buscar o tempero peculiar de cada vida.  E para isto, “Ah!” - ria-se Irene em sua expressão larga e enigmática - “onde que é que estão as receitas?”
Nestas horas, a feição de Dona Irene perdia-se em meio aos verdes das hortaliças, no castanho escuro da terra úmida e no azul limite do firmamento. No ímpeto de unir-se ao todo em sua volta, seu cozinhar era o convite que tinha à mão para revelar aos desatentos que, entre todas as coisas, podia, sim, haver alguma espécie de comunhão.  


Dona Irene, no entanto, logo se desfazia destas reflexões profundas e dos pensamentos insólitos dos recônditos da alma.  Pois para se cozinhar é preciso ser simples e trazer a consciência livre destas complicações que a mente tentava impor-lhe. E nada melhor para disfarçar as lágrimas que picar cebola.  E pensar em um novo cardápio.  Foi o que fez. 

Neste dia, foi preciso cantar mais alto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Hamer

Eu também vejo a vida como diversão e missa, e igualmente não sei
distinguir quando é doença e quando é luz.
Com perdão da má palavra, acho até que sou 'normal'

Beijo do Pá

Fernanda disse...

Legal!!

Anônimo disse...

Saudades, H!

De fato, estou aqui já com uns monstrinhos lactentes...

Bjs, inté
L.

Fernanda Robert disse...

Adorei!
Essência, tempero, vida...
Olha dona Irene cantando: Agradecer e abraçar (na voz de Bethânia... sempre descalsa no balco...)
Aos monstros... abraços e encontros!
Celebre!
bjo!