(Ou: "Os três velhos")
Eu estava tomando chá com leite e saboreando um novo pão de batata recheado com tomates secos e muçarela de búfala, distraído com o aroma de canela na grossa espuma do leite, distraído com a grossa camada de sono do final da manhã.
Uma senhora pede para deixar a bolsa um pequeno instante em minha mesa, enquanto pega o tíquete do metrô, certa de que aquele lugar seria mais prático e seguro, ao invés do fuzuê da desembocadura do gargalo das catracas, onde um larápio poderia ludibriá-la velozmente. Agradece-me a atenção com um cumprimento gentil, o que apenas de resvalo surrupia-me a delícia da bebida fumacenta.
Eis que então chega este senhor ostentando um sorvete em tudo verde, duma cor alienígena e brilhante, radioativa, contrastando sobremaneira com seus modos simples, planos e monocolores, monótonos. Um general decaído retratado por Andy Warhol. A careca avermelhada, cerceada por um pequeno nicho de resistência em forma de arco alvo, branquíssimo, denunciando seus mais de setenta e tantos anos. Sua posição inferior a mim, já que me sentara em um banco alto e ele no banco do meio do corredor largo do shopping center, arregaçava ainda mais a opulência de sua cabeça nua à minha visão perpendicularizada, crítica.
Outro velho, aparentemente um pouco mais jovem que o primeiro, trajando um paletó de veludo cotellet senta-se ao lado do que vinha chupando o sorvete e começa a mover a mandíbula de modo automático, articulando um diálogo sem nenhum terceiro. Passo a observar o tempo e o contratempo de suas velhas bocas se movendo: o primeiro em sua alienação de gordura hidrogenada vegetal, sabores artificiais verdolentos de pistache ou abacate, quelantes EDTA e mais algum outro flavorizante e estabilizante, e o segundo, que nada fazia além de querelar com seu duplo imaginário. Eu, o terceiro, a mosca que tudo vê, aguardando a velhice que me despista com sua chegada mansa de lagartixa.
Constituímos os três, por assim dizer, um trio absorto em suas micro-egotrips sem propósito ou rumo. Que mal faria àquela hora da manhã? Talvez tivéssemos sido mais unidos se fôssemos um trio de choro-canção, mas quem poderá um dia dizê-lo?
O velho chupando sorvete existiu para mim - que achava que sorvete era para criança - mais como um exercício de digitação (será que posso considerar isto escrita?) ou será ele alguém de verdade com uma vida própria?
(Às vezes, pela manhã, a fumaça do chá com leite pode despertar reminiscências lispectorianas).
(Às vezes, pela manhã, a fumaça do chá com leite pode despertar reminiscências lispectorianas).
Acho que se eu tivesse sabido desde muito cedo que velhos chupavam sorvetes, minha vida teria sido muito mais feliz. Mas se eu soubesse que quando idoso andaria sem rumo pelos bancos da cidade a falar sozinho, não haveria sorvete que me consolasse.
O segundo velho sai da minha vista e sua marcha se desequilibra quando ele tenta, já lá na frente, pegar alguma coisa do bolso, coisa que a vista não alcançou, coisa que só saberá o que era o próprio velho do paletó de veludo cotellet.
Termino confessando que nunca soube o que é um “veludo cotellet” mas é que estas palavras combinam tanto que eu não poderia separá-las, como separar se não pode o velho e o sorvete, leitor e escritor. E, por fim, amante e amado, se este fosse um escrito amoroso, se é que todos os escritos não são amorosos.
2 comentários:
velho é grave!
Thanks :)
--
http://www.miriadafilms.ru/ приобрести кино
для сайта hamerpalhares.blogspot.com
Postar um comentário