5.4.10

Cavaleiros prateados


Sabe aquela cor do lado de dentro dos embrulhos de ovos de Páscoa?  Pois bem, é àquela cor que me refiro. Não sei se é exatamente prateado, uma vez que o brilho e o reflexo é muito maior que o da prata mineral que conhecemos.  Mas é o mais avizinhado a que a língua alcança.
Era domingo de Páscoa, ou, talvez, os primeiros minutos da segunda feira.  Voltava de viagem e vinha de táxi.  Noite chuvosa e pista molhada.  Longa fila para chegar ao táxi. Encontro um amigo da época de faculdade que vinha chegando ao mesmo tempo. A prosa sobre os velhos tempos cedeu espaço aos relatos do taxista sobre engarrafamentos à chegada da cidade e aos vários acidentes.  “Este aqui já estava quando eu fui buscar vocês, já removeram o corpo...”  
Mais adiante, no entanto, uma aglomeração de carros da polícia, bombeiros e ambulâncias, e os curiosos passando lentamente para certificar-se do estrago. Vi, entre os carros desarrumados na pista e a moto retorcida, um embrulho no tal plástico prateado. “É, este aqui é mais recente, deve ter acontecido a menos de meia hora”.  “Fico pensando na família, como é que vão suportar a barra?”.   Uma sensação estranhíssima se apossa de todos dentro do veículo.
Quando era criança, lembro de ter visto um formigueiro ser destruído por um dos primos mais velhos e pensei:  “Por que é que as formigas ficam tão desorientadas?  Será que elas sentem o cheiro das outras e se assustam ou apenas tentam escapar?”  Foi assim que nos sentimos dentro do carro.  Apenas a forma da fuga é que foi diversa.  Identifiquei os primeiros acordes de uma música do Genesis na FM e pedi para o motorista aumentar um pouquinho o volume.  Ele, ainda aéreo, demorou para entender o pedido...
“Stay with me, my love...
I hope you’ll always be
Right here by my side if ever I need you
...(...)... Everyday is such a perfect day...”
Não adiantou muito, apesar da beleza da música ter mostrado talvez uma solução parcial, uma prótese de sentimento para digerir tamanho desconforto - estar próximo das pessoas a quem se gosta, aproveitar o fluir da vida que num dia, fatal e áureo, cessará. 
Mas, aqui embaixo, no mundo prático é que me pergunto: “Até quando seremos coniventes com a morte de tantos motoboys?”  Já se sabe que é um problema de saúde pública e nada de impactante surgiu até o momento a não ser leis natimortas e losangos no asfalto.  Tudo fadado a não ser cumprido. Eu também não tenho nenhuma solução para o imbróglio. Apenas a constatação de que o debate é imperativo. Minha voz hoje é só de protesto, um engasgo de dia nublado. Pois há dias em que não se consegue, mesmo, perceber luz qualquer.
Sei que as metrópoles precisam deles para fluírem, mas é dramático assistir a este espetáculo dantesco e diuturno.  São jovens, sonhadores, filhos e pais de famílias, palmeirenses e botafoguenses, pilotando seu cavalo motorizado nas cidades grandes que não os respeitam.  E as ruas que reencenam o mito do minotauro: os que se ofertam nos labirintos modernos, são, em sua maioria, motoqueiros.   Combustíveis da engrenagem do sacrifício a nos manter em nosso conforto provisório e apático.
Ali, em seu último envelope, da cor de um desenho em quadrinhos, encobrindo a confluência inacessível de cores da desventura, jazia mais um cavaleiro prateado...  Ainda não identificado, em sua derradeira Páscoa.  Era um entroncamento de grandes avenidas.  
A Páscoa, para os cristãos, simboliza o renascimento a partir - e através - do impossível, período de renovação dos votos de fé e de esperança no mundo. Ou, melhor, no outro mundo.  Daí que o presente que se dá é um ovo, ou seja, a totipotencialidade.  E o inesperado.  Cá no asfalto, neste mundo de agendas, terra e cimento, toda a potência e o imperscrutável nos aguardam a cada esquina e a cada dia.  Creia-se, justamente porque é absurdo.
O taxista, cujo nome não gravei, finalizou:  “Tenho um medo danado de me acostumar a isto tudo e a banalizar a vida e a morte”.  Finalmente: melhor é se deixar alvoroçar, à moda das formigas pisoteadas?  Ou simplesmente acelerar o carro?  Este é o entroncamento de grandes avenidas que cada um tem que ultrapassar sozinho.
A banalização é uma morte processual. Precoce, sorrateira e - aparentemente - indolor.   Sem envelope prateado.


4 comentários:

Fernando Chuí disse...

Você o tateia. Contempla-o.
Admira-o antes e depois de desmbrulhá-lo. Dá uma pequena mordida, não resiste e coloca-o todo na boca. Mastiga, deleita-se.
Fingindo ser especialista, você é a criança no parque de diversões.
Ainda bem que existem bombons pra nos provar que a infância não tem fim.
Ainda bem que existe a literatura pra nos lembrar da matéria prateada de que támbém é feita a vida.
abs,
Chuí

Anônimo disse...

Oi Hamer já li seu texto novo e mais uma vez adorei , feliz pascoa e um grande beijo da família Telles

Menezes disse...

Hamer

Ba, be, bi, bo, bu

Ta, ta, ti, to tu

“Mato

a moto

e o mito

morto

é mudo”

Abs
Menezes

Anônimo disse...

Olá Dr!
Uma boa fuga para sair do carro é abrir os vidros..(e rezar para não ser assaltado..)
Follow you Follow me..
Para ouvir o "clássico" na íntegra:
http://www.youtube.com/watch?v=DyDRXbP1MaY