(Dois sonhos e um poema)
"O sonho é um oráculo?
É um espelho de reminiscências do dia-a-dia?
É uma descarga de substâncias estupefaciantes?
Um viveiro onde monstros repousam suas cabeças cansadas nos ombros dos anjos?
Mas que diabo é o sonho?
- Ou será um Deus?"
Sonho Um: "O humano em seu miolo"
Maurílio teve um sonho que o emocionou e o deixou encafifado. Advogado, sujeito letrado e misantropo, interessado no mundo que o cerca, desde política e economia até sustentabilidade e ergonomia. Anda aos tropeços com o outro mundo, mais temível - o dos rebuliços internos - que não sabe se denomina de subconsciente, inconsciente ou qualquer outro termo técnico que o valha. Espera as horas noturnas como um hóspede recém-chegado espera o café da manhã.
Disse que era numa partida de futebol. Fim do segundo tempo, quando os fatos desatinam. Ele era uma espécie de observador onisciente: mas quem é a miragem de quem? Sonhador ou sonhado? Na verdade, como mal pressentia, ele era todas as partes do sonho, desde a bola a ser chutada até o árbitro a exigir o posicionamento correto da barreira naquele momento de clímax do jogo.
O atacante corre, nervos em ebulição, e de modo desequilibrado e vigoroso, bate na bola com três dedos. A pelota, rasteira, corre incendiária, passa ao lado esquerdo da barreira, ganha velocidade e efeito no contato com a grama, numa semi-inversão da lei do atrito. Atravessa à frente do goleiro que, entre pasmo, atônito e incrédulo, a vê propagar-se para o outro lado - o do inatingível - e, cingindo a trave, entrar no gol.
O atacante, que havia caído ao tecer este chute inverossímil, nada entende ao ver seus companheiros pulando sobre si ao barulho ensandecido da geral. Na TV, os comentaristas ficam tentando entender como aquele chute "espírita" fora cerzido. Programas de computação são utilizados para evidenciar a trajetória elíptica e improvável do cometa. Alguns creditam o gol à fé dos torcedores, ao resultado que tinha que ser, ao mistério e à mágica do futebol. Outros tentam desfazer a impossibilidade física do gol com cálculos matemáticos. A notícia e o povo ganham a rua naquele belo dia de abril.
O goleiro, ao ser entrevistado, disse que não se envergonhava de ter ficado parado, uma vez que a vitória do outro time era merecida e que eles sairiam de campo de cabeça erguida, entre outras previsibilidades... O gol era mesmo uma obra de arte. Situava-se no caminho entre o humano e o sobre-natural - se é que o sobre-natural não é, em seu miolo, humano. Uma aberração, um estado de graça, um transe: o atacante apenas agradecia e sabia que havia sido privilegiado, enquanto repetia o sinal da cruz incontáveis vezes. Genial ele não era, mas apenas o instrumento do genial.
A esta altura, Maurílio pensa: o sonho é o local onde ciência e fé passeiam de mãos dadas. Só ali mesmo. Quase comanda o sonho e com ele dialoga enquanto tenta aprender algo para a vida. Ao acordar, os aromas do sonho fundem-se à atmosfera adocicada do quarto: quando é que marcará este gol? Ou será que é um sonho de toda a humanidade, tão sedenta de - em errando - acertar? Maurílio tem dúvidas em sua crença em Deus, mas não tem dúvidas de sua crença no mistério. Ele participa do mistério e o guarda em si mesmo - não há como duvidá-lo, como olvidá-lo.
*****
Sonho Dois: "Brumas do não-revelado"
No início foi difícil de recuperá-lo, então Ana Mara teve que ficar esfregando a face nos lençóis, logo após ser acordada. Perdera a parte final do sonho e, ato-reflexo, irritou-se. Algumas horas se passaram e ela se questionava se o trecho que ficara faltando não era exatamente para ser construído numa obra conjunta entre devaneio e realidade. Foi justamente por ter o final arrancado que a fantasia desembocara para dentro de sua rotina naquele dia, de forma quase sinestésica.
Ana Mara assistia, em miração, ao pai de seu filho, de quem se separara há três anos, num final de semana em companhia do pequeno. Jonas escrevia uma mensagem para seu amigo Fernando, com quem havia adquirido uma dívida torpe, acontecimento ímpar em sua biografia. Dizia-se envergonhado, arrependido e pedia desculpas redobradas. Um dia, que não tardaria, iria resolver este enleio. Existiria, ou ao menos deveria, maneira decente de se pagar uma dívida e hornar a família, estivesse ela unida ou despegada.
Eram três quadros de valor, o tal objeto da dívida, algo que levaria alguns meses para ser conquistado, Jonas sabia disso. Mas que Fernando tivesse paciência, as coisas iriam melhorar para os dois. O pequeno Vinícius tinha pouco mais de quatro anos agora e era cada vez mais parecido com o avô, que Fernando tanto conhecera e com quem aprendera a jogar baralho. Ana Mara, pela primeira vez, ainda que em sonho, reencontrara, em Jonas, o sujeito leal e humilde em quem ela descobrira seu legítimo companheiro.
Eis que, passa na janela, a figura de Fernando e, chegando-se de modo inesperado e brusco - só possível em sonhos? - invade o cômodo de Jonas, e lança sobre ele e sobre o pequeno Vinícius, algumas cestas de presentes, mantimentos e comida revigorante. Jonas levanta-se, impávido, fica de pé, encara de modo emblemático e cheio de sentimentos o velho amigo Fernando. Uma teia indecifrável de significados circula no espaço vivo entre os dois e os aquece e alumia. Quando Jonas iria se pronunciar, Ana Mara é desperta e o desfecho se perde na bruma do não-revelado.
Ana Mara - uma figura cuja descrição é menos importante que a vivência - pensa: há trechos em mim e em Jonas que eu jamais descobrirei. Tenho que conviver com o imponderável, com a imperfeição: como quem sai com seu cãozinho para passear. Fazer da ausência minha confidente, minha cartomante. Sou, a todo tempo, falta em agonia e vibrante presença.
*****
Um poema:
Íntimo minério
Sonho rompido, gol imprevisível,
Mulher a embalar seu filho distante.
No carinho do absurdo de Dante,
Vislumbrarás o oráculo: falível?
Há um Deus? Existe mistério.
Não há Deus? Faça-se segredo!
Homem mistura desejo e medo,
Fé e quimeras: íntimo minério.
A falta que ama a presença.
A presença que odeia a falta.
A vírgula que muda o sentido
Do poemeto sem rima: fatal.
De amigo velho, de nascença,
Este olhar repleto, hormonal.
Ama o mistério: destemido!
Ser feliz? Malícia essencial...
Um comentário:
Venha sim me falar da malícia
de toda mulher
de todo sonho
de todo jogador de futebol
Vida sem malícia
é no máximo uma biografia singela
Ninguém sabe a dor e a delícia
sem ela
Abs,
Chuí
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