19.3.10

Pela leveza...

O caminhar da moça era leve. O do rapaz era firme, mas também tinha algo que fluía bem.  Há leveza no caminhar e no modo de falar.   Mas é preciso estar atento, ou - levemente - atento.

Há leveza no samba e até no hard rock, apesar de tanto valor que se dá ao peso dos tambores e das guitarras envenenadas por amplificadores valvulados.

A leveza é uma das características humanas que nos aproximaria do que poderíamos ser, não fossemos tão sofridos, tão radicais, tão tantas outras coisas.

Leveza não é inconsistência nem superficialidade.  Ainda que estas duas nos sejam empurradas como genéricos de modo encoberto tão amiúde.  Não a leveza dos livros de auto-ajuda, mas a que você aprendeu com sua tia-avó.  Pois cada família tem sua leveza: um bolinho de chuva como ninguém mais no mundo faz.

É a leveza do pombo, como dizia Italo Calvino, e não a da pluma, a de que tanto precisamos.  Leveza no modo de comunicar boas e más notícias.  Para ser leve é preciso estar próximo.  Mas a leveza também age apesar da distância.  A leveza de escrever seis propostas para o próximo milênio e ter uma obra consistente mesmo morrendo antes de completá-la.  

A leveza age através do tempo. Por isto é importante deixarmos rastros no caminho, para lembrar-nos de sermos, no futuro, novamente leves. Assim, a leveza nos será o antídoto de tantas auto-sabotagens.

O mesmo fio de leveza que levou Paul McCartney a compor tanto Blackbird quanto Helter Skelter.  Não é só ser sublime, é preciso ter energia, pegada, assinatura e personalidade.  É preciso ter voz para ser leve.  Mesmo para quem é mudo.  

Ser leve não é ter dó ou compadecer-se.  Ainda que não haja leveza sem compaixão.  Não é somente ser generoso ou gentil.  Não é mera educação ou polidez.  Ainda que estes ingredientes possam compor a massa, sem a temperatura humana adequada e sem o fermento dos anos, não haverá leveza.  

Ainda que mormente equânime, há sopetões e crises de abstinência de leveza ainda não codificadas nos manuais de classificação de doenças... A leveza é algo além do que vai no dicionário e além do que se possa sugerir.  Ela vai nas suas lembranças de momentos de leveza. 

Não é a leveza dos paraísos artificiais a que proponho, mas a das pequenas coisas. Não a dos transes ou das transas, mas a das tranças do cabelo da fotógrafa. Do conforto de um prato com bastante azeite de oliva. A leveza da fumaça do chá de hortelã.  E a do primeiro sorriso de quando se encontra um amigo de longa data após um intervalo ilógico de desencontros. 

A leveza de um pedido de desculpas oportuno, ou a que flui a partir daí.  Ou a leveza de uma criança correndo e imitando um cavalo, que só tem graça para quem já viu a cena. Ou a de rever "Casablanca", "Cinema Paradiso" ou "Amelie Poulain".  A leveza que você sonhar ou inventar.

Não é a de uma cantada barata em meio a duas ou três doses de uísque, não é o descompromisso.  Ainda que a leveza possa incluir duas ou três doses de bom uísque e momentos revigorantes de pés descalços desperdiçando horas sem culpa.

Sim à leveza de acordar mais cedo um pouco e abrir a janela ao invés de acender a luz.  E de falar bom dia ao português da padaria, ao estilo Zeca Baleiro...  

A leveza da voz potente e impactante de Elis Regina cantando "Ponta de Areia", ainda que nos doa no fundo de tudo o que somos. Precisamos de leveza ainda que nos choque: vale tudo para quebrar o lacre forte de indiferença e impermeabilidade com que nos deixamos envolver, obstinada raça humana que somos. 

Precisamos de leveza, mas não como um deserto precisa de chuva, já que o deserto continuará sendo sempre deserto, idem para a chuva.  (E a leveza pode até nos transformar...). 

Precisamos de leveza como um pedestre busca a sua faixa para atravessar para o outro lado.  Leveza é segurança, procedimento, paciência e fluidez. Precisamos racional - e não radicalmente - de leveza.  Pois já seria um contra-senso uma busca estabanada por algo que só encontramos distraidamente.

Carecemos mesmo é da leveza da sexta-feira transplantada para a segunda.  E de uma foto de criança na área de trabalho do computador.  A leveza de uma carta de amor num filme de guerra, não de uma guerra de nervos num romance. 

A leveza de não reprimir um ato de generosidade, ainda que não vá fazer diferença no longo prazo.  No longuíssimo prazo mesmo, nada fará diferença e a leveza nos terá guardado em seu repertório de lembranças. Até lá nos transformaremos num porta-alfinetes ou numa partitura amarelecida de J. S. Bach: a leveza é para agora e não para quando estivermos preparados.

Com leveza se prepara um prato bem temperado e se dá um beijo de boa noite ou de bom dia.  Com leveza se segura na garganta uma fala ofensiva e desnecessária... e se dispensam outras palavras gastas das declarações mútuas de afeto.  Sermos leves será a nossa vindoura declaração de afeto.



28 comentários:

Anônimo disse...

E aí Hamer meu velho. Sua leveza atravessa o coteúdo e toca a forma da sua escrita de forma belissima. Meu final de semana (ao menos ele...) será muito mais leve, deliciando a leveza, depois de lê-lo. Saudade docê. Grande abraço. Fernando (Tigrão)

Unknown disse...

Seria tão bom se todos tivessem essa LEVEZA!!
O mundo seria muito diferente e mais LEVE!
Lindo o seu texto.
Bjs
Silvia

Fernando Chuí disse...

Leveza como potência.
Leveza como desejo.
Leveza que eleva a amizade
a princípio.

Abs,
Chuí

Anônimo disse...

Vc se superou, gostei muito!
Adoro tudo que vem desta palavra.

Leveza...

Bjs
Vivian

Anônimo disse...

Hamer querido!
Ótimo seu texto, e eu avalio que você é um camarada que consegue ser leve em inúmeros momentos! assim dá vontade de ficar perto.
Abraço
Eroy

Anônimo disse...

H,

Quantas vezes a leveza é acusada de leviandade, ou o simples tomado como simplório?
Aí pra não se perder nessa linha tão tênue é preciso se despir do verniz e dessa fleuma toda, que eu tanto vejo por aí.

Bjs
L.

Anônimo disse...

sempre lindo... contagiante....

Anônimo disse...

Muito lindo! Amei... Estou precisando dessa leveza..
Bjs
Dani

Anônimo disse...

Incrível sua capacidade de escrever textos que envolvem diversos planos sensoriais.
Fiquei tão leve que consigo sentir o cheiro e o goto do azeite de oliva de uma bacalhoada e de uma chá de hortelã, ambos feitos no fogão a lenha.

Lindo!

Lu

Unknown disse...

Bela inspiração!
Flávia.

Yone disse...

Esse texto terapêutico era tudo que precisava pra fechar a semana: da leveza de suas palavras, de sua amizade, de seu afeto, da sua generosidade sempre e principalmente da vontade de sorrir ao te encontrar logo, pois voce é um amigo de tal leveza que qualquer intervalo sem te ver é um ilógico desencontro. Adorei isso. Voce traduz em palvras a leveza de nossos sentimentos. Beijo

Yone

Fernanda Robert disse...

leve... suave e doce... o sabor dos encontros, das descobertas!
Adorei!
Beijo,
Fernanda

Hamer Palhares disse...

Tigrão,

Bom te reencontrar após um intervalo ilógico de desencontros. Obrigado pelo incentivo.
Abraço

Hamer Palhares disse...

Pessoal,

Acho que estávamos precisando mesmo de leveza. Talvez tenha sido o texto que saiu mais naturalmente e, pelo visto, parece ter sintonizado com várias pessoas.
Procurei ser o mais simples possível.
Obrigado a todos e todas que deixaram seus comentários,

Hamer

Fatima disse...

....estou chegando agora, mas quero minha porção de bacalhau com muito azeite tanbém!!

to gostando do que vi...heheh

Maurilio disse...

Absolutamente incrível côco.... sempre amo as coisas que vc escreve.... mesmo lendo atrasado e sem tempo às vezes .. ( sorry for that ) . Mas esse texto chega a ser a própria expressão de leveza... muito bom.... e me pegou num momento incrível... deitado na minha cama sob bons lençóis.. ouvindo Across The Universe... E a primeira coisa que lembrei ao ler foi de um certo aniversário teu na praia do espelho..... Grande abraço meu velho... ( PS: dá uma olhada na versão que eu tava ouvindo da música acima... : http://www.youtube.com/watch?v=JqRxi6G7Dro )

Unknown disse...

Lindo seu texto! Parabens e obrigada por compartilhar.. Ruth

Hamer Palhares disse...

Fátima,

Na verdade, o texto só prometia um prato com bastante azeite, mas não tinha nada de bacalhau na história. Sendo assim, eu é que vou aceitar o convite, hehehe!
Abç,

Hamer Palhares disse...

Mau,

Valeu a versão de Across the Universe! Muito boa mesmo (não preciso dizer que para mim a do John continua incomparável, né?). Valeu pela lembrança, certamente é um dos rastros de que o texto fala.
Abç,

Marcos disse...

Fantástico, muito bom mesmo!
Mas e aí? Vai abandonar a medicina e se dedicar à literatura?
Abração,
Betiolo.

Anônimo disse...

Não! Abandonar a medicina no!
Flávia, muda o tema..

Unknown disse...

Leveza para essa segunda-feira que já chega em polvorosa!
Bela hora em que você me presenteou(e, pelo visto, a tantos mais) com a leveza da sua percepção!
Grande beijo,
Nati.

Hamer Palhares disse...

Betiolo,

Na verdade, a escrita é muito mais uma forma de reencontro, apesar de ser um modo de expressão mais flexível que os textos médicos.
Talvez lá pelos oitenta anos eu deixe a medicina, mas vai depender do meu geriatra...
Abraço,

Hamer

Paula Souza disse...

Esse texto me lembrou um poema:

O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.

Um belo dia - por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos -
você abre a janela, ou abre um pote

de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e nítida:

É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega

a latejar na mente o tempo todo?
Então por quê?

E neste exato instante
você por fim entende, e refestala-se
a valer nessa poltrona, a mais cômoda
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.

(Mesmo que seja por 30 segundos.)

Paulo Henriques Brito

regina disse...

adorei,pra variar.e vc sempre com sua leveze incrivel!!!!beijossssssss
adoro voce!!!!

Maria Cecilia disse...

Hamer,
Verdade,lindo !
Precisamos conseguir o toque de leveza que os compromissos do dia a dia nos levasm a perder,pouco a pouco...
Para que até as pequenas gentilezas e mensagens subliminares voltem a ecoar em nossas mentes e corações,integrando nosso cotidiano...
Bj
M. Cecilia

Karine Koller disse...

Olá, Hamer!
Adorei sua aula de hoje (sobre BZD), adorei seu blog, em especial, o que escreveu sobre a leveza. Percebi que, há tempos, careço das lembranças que busco, todos os dias, da minha própria leveza...
Beijos!
Karine Koller

Anônimo disse...

Dr.Hamer,
O Texto é incrível mas há algo que preciso lhe perguntar: - Você usa ou já usou àlcool e drogas?
O que é permitido nos dias de hoje, na sua opnião?
Bj
Laura