(Fragmentos de um romance virtual).
Estrelas sob a pele quente
Noite. Estrelas por trezentos e sessenta graus. Luar. Noite. Terra sob os pés. Grama sobre a terra. Rasteira. Poeiras e estrelas. Noite. Algazarra ao longe. Fogueira. Pessoas em reunião. Vento. Caminhada. Vento. Terra entre o vento. Poeira. Carne sobre o fogo. Fogo sob a carne. Noite. Bordões na música ao longe. Epiderme. Frio. Ossos. Friúme. Pele. Fria. Agasalho. Quentume sobre a pele. Quentume sob a epiderme até os ossos. Outra pele. Outra carne. Cumprimentos. Encontros e sorrisos. Abraços. Bebida. Uma festa. Uma festa! Noite! Fotografias. Aguardente. Memórias, histórias. Outra aguardente. Calor. Mais noite, a mesma noite, já outra noite... Sono. Noite. Sonho. Estrelas sob a pele quente. Noite, quase dia, ainda noite. Janela entreaberta, pássaro, canto. Pássaro, canto, fotografia, relevo. Distância, canto, pássaro. Lembrança, nostalgia, águas, pássaro, fuga, chuva. Raios, águas, solidão, chuva. Janela fechada, medo, tremor. Arco-íris, luminosidade, fresta, janela, retorno, confiança, plantas, plenitude, pássaro. Dia.
A literatura, os encontros, as memórias, sem os verbos, são. Eu, não. Mesmo quando repouso: repouso. Quando durmo: sonho, respiro, perco o tempo, me coço, me viro, durmo. Quando tento, sem sucesso, meditar: medito ou me arregalo - mas é sempre o verbo, este canalha, este amante, este gato arisco. Não sou sem o verbo. Sem o verbo, nada. Apenas o que me é externo, apenas o que me dispensa, ainda que me seja tão precioso, cardinal.
Estou assim sem a menor condição de traçar qualquer panorama do meu espírito e da disposição interna do meu ânimo. Francamente, não sei o que estou fazendo aqui. Retorno à escrita primitiva: volto ao papel e à caneta-tinteiro em busca de escorregões diferentes da máquina arcaica de cerzir tramas. Aqui, custando-me cara cada palavra, a inspiração há de se revelar, ainda que a contragosto. Desconfio da inspiração. Também nada posso contra ela. A busca de originalidade não se revela facilmente. A busca de originalidade não se revela. A busca de originalidade, não: a busca. Esbarramos nela como que por acaso. Não acredito que possamos atingi-la, assim, de forma calculada e obstinada. Podemos, quando muito, preparar o ninho, colocá-lo no local mais alto e arejado da casa, no peitoril externo de frente para a aurora. Também para o amor, o mesmo é válido. Há que se custar cara cada palavra que se arvore a conduzir, em circunvoluções, a amar. Fora da autenticidade, no entanto, ainda há muito que se viver, já fora do querer...
Há que ser forjada em ouro cada moeda que se queira trocar por uma palavra de fruição, de afeição. Ou melhor, em cobre. Cobre da cor da pitanga, cobre da cor da moeda vulgar, da cor da moeda nobre. Cobre, elemento químico de número 29. A idade que tem Letícia, mulher de cobre. Mulher de carne e osso. Mulher de pitanga. Mulher química. Mulher elemental. Mulher. Esta palavra tão repetida e original a seu modo. Esta palavra tão forte quanto a noite ou quanto o dia. Esta palavra mais forte que o verbo. Esta palavra mulher.
Regrido muitíssimos anos no tempo, esqueço deste hoje onde os cabelos brancos, a vista baça e a pele amarrotada se apossaram – coronéis da geografia árida do meu corpo. Sou novamente sonhador e revejo Letícia e tudo que vivi. Os nanquins nas paredes me fazem companhia.
A vista que se dirige para dentro arde frente ao Sol de uma época distante. Arde frente à imprevisibilidade de tudo o que foi. Do modo como foi. Arde, não mais a língua seca, como que de papagaio, mas a face lívida e úmida, de espanto, escárnio e de alegria que tudo tenha ocorrido exatamente como foi e não de outro modo. A face pálida, encantada e líquida de lágrimas.
O papagaio está morto, e custou-me muito sacrificá-lo, mesmo por uma causa tão invulgar. A única certeza que me resta não é mais o sucessivo taramelar, mas o enlevo, o arroubo, o êxtase daquilo que é estar vivo. Ainda que a excepcional virtude que reste à vida seja a de sua característica luminosa em certos dias viçosos. A partir desta experimentação, todos os caminhos são, moto-perpétuo, adornados, alumiados, embevecidos. Ainda que isto já tenha sido há tantos anos...
Estou mais forte e indiferente à solidão, esta companheira que me esquenta o café com leite e me serve as torradas pontualmente às cinco e meia da manhã e que aprendeu, às duras penas, a não me contar mais nenhuma notícia do mundo lá fora.
A história tem esta face brincalhona e desmazelada e que nos torna avós de nós mesmos: éramos mais jovens nos tempos antigos e hoje, tempos modernos, somos mais velhos – farpa simples, certeira e dirão, por vezes, curativa... Estou mais sensível à beleza, à delicadeza da música e do estrépito das águas sob a ponte na fazenda. Borboletas espaciais brincam em tons alaranjados, azulados, avermelhados, embriagadas em seu vôo lépido e descontínuo. Despretensiosamente. Aprendi a admirar a despretensão...
Novamente é maio. Nota-se uma poeira cúprea, ferruginosamente cúprea, dançando sob a ação coruscante da claridade matinal acolhedora e amarelada dos dias de outono. Letícia resiste em cada vôo das borboletas vibrantes. É refletida nas multicores de seus arcos e pétalas, nos olhos devassadores que se escondem nos desenhos fractais de suas asas – túneis para tempos idos, perdidos, sonhados. Ainda aguardo o ano todo pela chegada destas aladas deusas caleidoscópicas... Noite... Dia... Elas voltam a cada mês de maio. Então perpetro minha última e particular vingança: não preciso dos verbos para juntar-me a Letícia - bastam-me as borboletas.
2 comentários:
Belo texto, Clemer.
Sim, lindo, Dr.. Tive uma sensação parecida com a de quando li Budapeste. Parabéns!
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