15.12.09

Quatro Por Vinte


A noite era escura, ventava... Ameaça de chuva, mas ela sentia que podia seguir. Tomou um fôlego mais e refez as contas: sentia-se com medo, uma inquietação difícil de explicar, e, por outro lado, uma excitação doida, mais difícil ainda de compreender...  Tudo aquilo a habitava ao mesmo tempo de modo amalgamado e fervilhante.  A excitação empurrava o medo, que, em contrapartida, só fazia o desejo crescer.  "Por que cargas d’água isto tinha que acontecer justo comigo?"  Por que precisava se sentir como diante de uma prova de vestibular, diante da máquina afiada do torturador a cada semana, dia e hora? A turbulência é bruscamente interrompida pelo trovejar e, para sua sorte e decepção, seus planos foram por água abaixo.  O seu pavor medular da chuva, naquela bruma tenebrosa da cidade grande, a salvou de passar outra noite insone na favela, trocando seus sonhos pela química volátil, empedrada e clara dos bruxos modernos...
Naquela noite ela conseguiu dormir mais cedo,  teve um sono conturbado e acordou aos prantos antes de todos na casa.  Eram as dúvidas dos vinte anos de idade?  Era a saudade do namorado, sumido na encrenca da noite há quase uma semana?  Ou era só o que os doutores chamavam de crise de abstinência e que ela, em sua incredulidade e inocência perdida começava, muito a contragosto, a compreender? 




*****




A noite estava apenas começando. Eve conseguiu sair de casa mais cedo e fugiu do trânsito afogado da metrópole naquela noite de chuva.  Teve que esperar os amigos.  O tempo fluía em outra frequência na casa noturna ainda quase vazia - era exatamente do que mais gostava.  A música já seguia seu ritmo de quase mantra, em batidas e ritmos eletrônicos e jogos de luzes caprichosos que a deixavam em outra voltagem.  Tomou a segunda bala da noite.  A primeira foi com um Red Bull, ao sair de casa; era o seu comprimido preferido, aquele que vinha com o coelhinho da Playboy.  Esperava um amigo italiano que tinha um microponto especial que ela aguardava ansiosamente por experimentar.  Ele mandou um torpedo em inglês dizendo que chegaria dali a meia hora e que ela se preparasse...  Reforçou a maquiagem.  Usava um vestido curto e tinha um estilo retrô que lembrava a década de 70 do século que vem. Tomou mais uma água, era a terceira ou quarta da noite. Bebia mesmo sem sede, por precaução.  O DJ principal só entraria às quatro horas, era a balada do ano, como tantas outras naquele ano.  O italiano chegou.  Por um momento ela pensou: “Como ele é lindo... mas deixa prá lá...”  Tomou um quarto da dose e depois mais um quarto.  Sentia-se eufórica, ia esmerilhar na pista.  Suas amigas chegaram e disseram que a chuva tava foda lá fora.  A noite começou a bombar. Um carinha chegou para conversar com ela, mas estava bêbado demais.  Ele até que era engraçado e não demorou vinte minutos para vê-lo sentado numa das escadas, os amigos tentando levá-lo embora, dois degraus acima de uma poça de vômito.  Eve pensou: “Mais uma baixa...”. Retocou a maquiagem novamente. Mais uma água.  Entrou seu DJ favorito.  Um guri bem bacana começou a dançar perto de seu grupo. Este não estava tão frito quanto os outros.  Eve passou uma senha pelo olhar: “Pode se aproximar”.  Sentia que a comunicação era com poucos olhares, e só um seleto grupo poderia compreendê-la.  Ele dançava de um jeito charmoso e insinuante e ela deixou-se levar.  Foram só duas ou três microfrases, o suficiente para uma troca de contatos de MSN. Ele era arquiteto, ela era ela... Acordou sob a pressão do trato que tinha feito com um primo de Campo Grande que vinha visitá-la.  O primo a levou a um restaurante vegetariano. Eram três da tarde de um sábado nublado.  Ela não tinha dormido mais que quatro horas.  Ao entrar viu uma frase na parede: “Torna-te quem tu és... Nietzsche”.  Releu e não entendeu direito, mas sentiu-se, novamente  e pela primeira vez, tomada.

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Helena gostava de literatura.  Só lia coisas do século passado.  Usava algumas das frases preferidas - que anotava em um bloquinho de capa dura - no meio do seu discurso. Era para impressionar e para fechar a discussão.  Não gostava que ninguém dissesse que aquilo era para impressionar.  Alguns do amigos achavam que ela ficava meio arrogante nestas horas e que a vida dos livros é diferente da que se vive aqui do lado de fora das linhas, onde importa saber o preço do peixe, da luz e do metrô. Também era fã de MPB.  Gostava dos nordestinos e do samba de raiz do Rio de Janeiro.  Não gostava destas coisas modernosas e das novas cantoras.  Sua predileta era Elis Regina, que era ao mesmo tempo mais natural e mais inovadora.  Sabia que todos teriam que concordar com isto...  Percebia o som de um modo diferente se tivesse fumado um.  Ali, alguns detalhes da percussão, a tridimensionalidade do som, a textura do violão ficavam mais claros. Podia dizer se o carinha que tava tocando tinha as unhas curtas ou compridas só pelo aveludado do som.  Sentia-se, ela mesma, aveludada. Só não gostava da larica, pois estava começando a ganhar peso e sua irmã mais nova já tinha falado: “Deste jeito, imagina quando você chegar aos trinta...”. Numa mirada rápida, Helena, que não era a mais bela, poderia parecer menos interessante do que, de fato, era.  Quando se cortava a gordura da música, da marijuana e das frases de efeito, garimpava-se uma menina doce, quase infantil, sonhadora e interessada no mundo.  O problema é que esta capa nunca se lhe desvencilhara.  Nem mesmo naquela noite, onde tantos mundos se chocaram na paulicéia chuvosa e em que ela preferiu ficar em casa, acender um e ouvir “Tranversal do Tempo”.  Teve um sonho bizarro, onde via pontes, luzes estroboscópicas, uma menina que nunca conhecera chorando em um quarto escuro e pensou: “Será que sou eu?”.  Acordou com o barulho da agulha se enroscando contra o papel do centro do LP.  Amanhecia. Era o começo de um dia nublado.





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“É só você não saber o que é não ser puta e você nunca será uma puta...”. Foi o que ouviu na primeira casa em que trabalhou. Nunca se esquecia desta frase e, nos dias em que não estava bem, era o que a fazia tolerar alguns dos homens intragáveis e feios. Nestas horas pensava em como devia ser bonito o mar e gritava como se estivesse mergulhando nele. Ângela/Kátia tinha treinado o seu corpo para produzir as mesmas borbulhas que o mar faz quando se bate nas rochas. Era o mesmo que sentia nas noites de fome, quando a cola - que os meninos da ponte lhe davam em troca de favores - fazia sua cabeça chocar contra o asfalto e contra o sono. Só assim não ouvia os gemidos aterrorizantes das sirenes da Veraneio policial. 
Chegara naquele inferno aos 15 anos, pois já tinha corpo de 18 ou 19.  Arranjaram para ela um documento falso, nomes de pai e mãe, um penteado e um vestido novo. Lembra-se que este foi o primeiro dia em que sentiu um negócio estranho e que parecia ser bom.  Um cabeleireiro amigo seu, que cuidava da apresentação das meninas da boate, disse que aquilo era felicidade, Ângela/Kátia desconfiou, mas também não tinha argumento para dizer que não fosse. Essa palavra - argumento - tinha ouvido numa novela e ficou interessada em saber o que queria dizer.  Dormia com ela na cabeça, como uma criança rica devia ficar agarrada com seu ursinho de pelúcia.  Foi o que pensou naquela noite de chuva, quando deu seu terceiro filho para adoção.   O segundo filho tinha sido “um acidente de trabalho”, como disseram as amigas.  O primeiro e o terceiro eram filhos do mesmo “sem-vergonha, filha da puta que me meteu naquele mundo” e “que ganhava nas minhas costas”. “Ainda por cima era ruim de cama...” Não tinha mais o tal “argumento” para continuar naquele sofrimento. Tinha 22 anos, era o que dizia o seu documento.  Numa das pontes da 23 de Maio, ficou em dúvida entre a fileira de luzes brancas e vermelhas. Ficou em dúvida entre Ângela e Kátia. Pensou que era mais garantido se escolhesse as luzes brancas.  Lembrou-se de seu amigo cabeleireiro, sabia que ele ficaria bem com o tempo... Chovia cada vez mais forte, por todos os lados. Teve a impressão de que um amigo trouxe uma lata de cola. Mais depois viu que era coisa de sua cabeça assustada pelos trovões ou do outro mundo que se aproximava. Sentiu o corpo bambo, trêmulo. Estava firme. “Você nunca vai saber o que é ser puta...”.  No meio do caminho, sem tempo para se arrepender, teve um pensamento besta, enquanto a luz branca se aproximava em alta velocidade: “Minha sandália escapou!”.   


6 comentários:

Ju disse...

Muito bom !!Mais uma vez parabéns...
Até.

Beijão,
Ju.

Analice disse...

Muuuuuuuuuitooooooooooooooo booooooooooooommmmmmmmmmmmmmm !!!!!!!!!!!!!!!!
É seu...

Yone disse...

Eita moço, tá bom na coisa hein?... Está ficando muito bom mesmo. Beijo

Pessanha disse...

Meu caro amigo Hamer:

Sua maturidade intelectual está muito além de sua carteira de identidade...
Você é "o cara".

abraços - Pessanha - Cajuru

Anônimo disse...

SHOW, HAMER 'VERÍSSIMO' PALHARES

ABS
CRIPPA

Hamer Palhares disse...

Pessoal,

Obrigado pelos comentários e pelo incentivo.
Algumas pessoas me perguntaram por que "Quatro por Vinte"? Talvez a confusão seja intencional, mas a idéia é que são quatro personagens na faixa dos 20 anos, vivendo à sua maneira, em uma mesma noite chuvosa.
Abraços a todos,

Hamer