25.12.09

"O Mundo"


(Sobre o Luto - Ou: "Um pequeno sopro de restauração para aqueles que perderam pessoas amadas".)


Era o segundo Natal de Maria sem seu filho.  Fora uma perda rápida, sem tempo para despedidas e sem tempo de dizer o essencial.  Mas a conversa dos dois era mesmo subentendida.  Deixaram de contar alguns segredos que acabaram morrendo como tais.  
O filho batera o carro em alta velocidade.  Ao que parece, tinha bebido. Por sorte, pensava Maria, não levou consigo mais ninguém.  Por azar, não havia sido ela em seu lugar. A namorada havia ficado em coma por dois dias e, tão logo recebeu alta hospitalar entrou em desespero ao saber da tragédia que a concussão havia lhe prevenido de perceber. 
Maria tinha 62 anos e era a filha mais velha de uma família de três mulheres, todas elas professoras. Não era religiosa e o golpe recente lhe furtara o que restava de dúvidas.  Mas o desejo de reencontrar o filho a impunha um quê irracional de esperanças que botavam em xeque suas crenças.  Alguns amigos sonhavam com o filho e, repetidamente, a sua aparência era a mesma - mais novo, alegre como sempre. Havia concluído os estudos e conseguira um trabalho com carteira assinada. Ela só via as coisas como eram e agradecia o esforço daqueles que tinham coragem de lhe falar sobre o filho Pedro.
Naquela semana, alguns fatos estranhos cercaram a casa de mistério: o gato que criava, cujo nome era Napoleão, repentinamente reaparecera, após quase dois meses de um sumiço inexplicável. Alguns barulhos estranhos pela noite se confundiam com o enredo do sonho.  Um velho álbum de fotos da infância do filho ressurgiu no sótão da casa.  Evitou revê-lo, pois não se sentia pronta. Procurou seu baralho de Tarô e decidiu jogá-lo. A carta "O Mundo" lhe sugeria uma viagem enorme a ser traçada no próximo ano.  Pensou no gato, no álbum de fotos e não se pôde decidir acerca do vetor da viagem - apontaria ele para fora ou para seu íntimo?  Decidiu que a única maneira de sair daquela situação era fazer com que os dois vetores apontassem na mesma direção.  Só saindo de dentro de si mesma poderia lançar-se no desconhecido. Só em outro país, outra cidade ou outro amor poderia re-conhecer-se e reencontrar-se.  Foi por isto que teve energia de preparar a ceia, de convidar a todos e de fazer questão que participassem.  Poderiam trazer as bebidas que quisessem, Maria não era radical nem se convertera a lutar contra o alcoolismo.  Era apenas uma pessoa de bom senso, sem nenhuma habilidade ultra-especial e que sofria. Uma história que poderia ser de qualquer um e que era a dela. 
A vida, para Maria, era fluxo e, com o virar das estações, percebera como todos carregavam perdas - a sua não era a única.  Apenas a mais insuportável - não imaginava que  dali em diante pudesse provar outras aflições ou sabores. Esta era a maior - e abafada - dor:  a perda, paradoxalmente, a tornara mais forte, ainda que às custas de um certo cinismo e de um ar acinzentado que lhe saía dos pulmões - chaminé de uma lareira sem brasas.
A preparação da ceia seguia ritmadamente: os mesmos pratos de sempre. O sal das lágrimas retidas não chegou a mudar o sabor maravilhoso daqueles excessos: apenas a boca é que se negava a sentir os gostos como eles poderiam e deveriam ser. Uma falta de alegria no ar.  Não havia tristeza. 
Os convidados iam se chegando, já eram nove da noite do dia 24.  Havia um certo não dito entre as pessoas.  Alguns parentes inventaram desculpas para não participar da ceia, prevendo que não suportariam aquele ar nostálgico. Outros arriscavam piadas curtas de salão. Ela ria ora com gosto, ora por cortesia. Estava com seu vestido novo, comprado para a ocasião, como se aquela pele fina, cor de pérola comprada no shopping recém-inaugurado, pudesse esconder um turbilhão de emoções ressequidas que a habitavam.
Antes do início da ceia natalina, Tia Ofélia se prontificou a fazer a oração, mas Maria logo vetou: "Não é preciso oração - a família reunida já é uma oração".  Mas acabou se traindo e, em silêncio, sentia, como que por milagre, a presença de um sopro de restauração no ar, como nos dias em que se acorda sem febre após uma longa enfermidade.  Acolheu, pela primeira vez em meses, o calor do corpo de outras mãos e pessoas.  Pôs-se a rezar enquanto comia e devorou cada uma das palavras que a intuição lhe trazia.  Sentia-se viva. Haviam se reunido por ela.


6 comentários:

Ana Luiza disse...

Adorei! Esse texto e o último... Acho que você deveria publicá-los, estão ótimos!

Beijos e um feliz 2010! Muito sucesso, muita saúde, muitas alegrias e que você mantenha essa inspiração :)

Ana

Lisandra disse...

Hamer, os textos são fantásticos, parabéns e um 2010 ainda mais produtivo.
Lisandra

Vivian disse...

Bonito texto, parabéns.

Bjs
Vivian

Yone disse...

Querido, o mundo faz parte de cada dia de nossas vidas, está dentro e fora de nós. Em alguns anos ele é intenso, como nesse que termina, mas também ele traz muita renovação com suas experiências para o próximo que vem após um ano que é intenso como foi esse que, como dizia meu velho e saudoso pai: "calma, esse também vai passar, mesmo que voce não acredite." E esse também passou. Um beijo

Yone

Anônimo disse...

Olá Hamer:

Sou leitor e admirador de Moacyr Scliar e, como já tenho alguma intimidade com o autor, vejo semelhanças em seus textos, o que me torna também seu admirador.
Obrigado pela agradável leitura de suas crônicas.
Pessanha - Cajuru SP

CRIPPA disse...

OLÁ HAMER,

EXCELENTE!!!!

PARABÉNS E FELIZ 2010 COM MUITOS CONTOS!
CRIPPA