28.12.09

Máscaras do ócio





“Não fosse tamanha preguiça, teria feito muito mais besteiras na vida...” (M. Quintana)

“...tanto o trabalho como o tempo livre podem proporcionar bons frutos se forem cultivados acuradamente, de modo que o primeiro não se deturpe transformando-se em brutalidade e alienação, e o segundo não degenere em tédio, dissipação, uso de drogas ou violência.” (Domenico De Masi)

Movimento 1. O ócio dançando um partido-alto com o trabalho.  

Paulinho da Viola usa o tempo vago com o seu hobbie de marceneiro. Mostra seus feitos como se estivesse tocando alguns de seus doces sambas, no mesmo estilo lorde brasileiro, caso tal estilo existisse. Valéria se pergunta por que é que as pessoas se levantam tão logo o avião pousa e ficam todos em pé no meio do corredor, o que acaba atrapalhando o fluxo que poderia, de outra forma, ser mais natural. O mesmo se repete na espera das bagagens que não chegam na esteira.  E todos sabem que a sua é sempre a última a chegar. Parece que estamos sempre em fila, atentos,  atrasados e acabamos por perder a avaliação do que atualmente está a nosso alcance, o que nos lança num futuro incerto, reclama. Quase que uma dissecação anatômica da palavra preocupação.  “Por isto tantas pessoas ansiosas e o consumo exagerado de antidepressivos”. Pensa que algumas pessoas vieram ao mundo a trabalho e outras a passeio. Gostaria de ser do segundo grupo, mas sente um peso na consciência que não consegue arrancar nem a fórceps.

Movimento 2. Estamos preparados para o ócio?  

Zeca Pagodinho declara à imprensa que agora sim, vai começar a aproveitar a vida, pois já criou muitos filhos, dele e dos outros. Alguns riem, outros percebem que ele está falando sério mesmo. Joana tem três filhos e preocupa-se em como fazer as contas fecharem, como Lady Madonna na eterna música beatle. Gosta do que faz, é funcionária de uma lanchonete, onde seus pratos criativos são elogiados frequentemente, mas ressente-se com o que consegue ajuntar. Pode se tornar sócia do negócio, caso as coisas continuem indo bem. Gostaria de ter mais tempo vago para as crianças, mas no final de semana sente-se tão exaurida que não consegue ficar em paz com seus pequenos. 
Talvez alguns estejam mais preparados para o ócio que os outros, ou tenham ocupações que aparentam mais swing e fruição. “Faça o que você gosta e você não se sentirá trabalhando um dia somente!”  Será?  Joana gostava de música e aprendera a tocar piano intuitivamente, mas nunca pensara em ganhar a vida com isto. Um amigo músico lhe falou: “Quer deixar de ser um músico amador?  Torne-se um profissional e fique no final da festa desmontando os equipamentos...” Pode ser mais recompensador fazer o que se gosta nas horas vagas? Há como costurar trabalho e lazer em um moto-contínuo, que se estende até os sonhos, como pretendia Domenico De Masi, gerando intuições produtivas e criativas?  E se possível, quem é que gostaria de fazê-lo?  Por que todos os que tanto elogiaram o ócio, como De Masi, Bertrand Russell, o francês Paul Lafargue e Hermann Hesse eram prolíficos workaholics

Movimento 3. O ócio como mercadoria de luxo.

Dr Carlo é um médico endocrinologista bem sucedido.  Atua na cidade mais populosa da América do Sul.  Coordena um serviço de tratamento e orientação a pacientes diabéticos.  Lida com uma doença crônica e, sabidamente, de difícil controle.  Ressente-se com os baixos investimentos governamentais nesta área tão importante da saúde.  Está planejando suas férias de fim de ano. Fica impressionado ao constatar como os banners de anúncios turísticos contaminam toda a paisagem possível da internet e, do mesmo modo, as agências nos pequenos vãos e micro-espaços entre as escadas dos shopping centers. Parece-lhe até que viajar e ficar à toa é uma obrigação, não um direito. Obrigação que Dr Carlo cumpre anualmente, à revelia.  O pai, cirurgião cardíaco, dizia que médico não viaja, vai a congressos. Dr Carlo é um rato de sebo.  Ali encontrou um livro de Eric Hobsbawn que lhe explicou porque não conseguira ficar preguiçosamente rico com o sonho da bolsa de valores: os tais ciclos de Kondratiev, as contrações espasmódicas e periódicas da economia sobre si mesma, que muitos estudiosos teimam em contradizer mas que a experiência reiteradamente escancara.  Pensou que aqueles tombos poderiam ser um bom estímulo à retomada de sua carreira.  Planejou o doutorado, onde avaliaria o sucesso de um sistema de seguimento de pacientes à distância, utilizando a tecnologia de vídeo-conferências e um registro on-line de glicemias num software alemão.  Seria o seu décimo quarto ou quinto artigo internacional, um lugar esplendoroso na academia, respeitabilidade, horários supostamente mais flexíveis e talvez o tão aguardado filho.  Ludmila, sua esposa, era fisioterapeuta especializada em reabilitação psicomotora em acidentados.  Trabalhava seis horas por dia.  Academia, leitura, salão de beleza, atividades voluntárias e MSN ocupavam o seu tempo no restante do dia.  Definia-se como caseira, desobstinada, tranquila. Criticava a velocidade do mundo e especialmente de Carlo, que, ironicamente, chamava de Dr. Carlo. E o tal Dr. tanto lia nos livros o exemplo que sua companheira, em sua simplicidade e desembaraço, servia à mesa todos os dias.

Desfecho - O elogio ao ócio.

O elogio recente ao ócio será apenas mais uma máscara do hiper-trabalho, que agora pretende atravessar as fronteiras dos escritórios e acompanhar-nos casa adentro, via rede de computadores? Pedro, professor de história, acha que não.  Na verdade, pensa que as novas formas de relação com o trabalho, contrariamente ao que se imaginava, pode liberar tempo livre para aqueles que dela puderem lançar mão. Façam-se as contas: quanto tempo foi economizado em filas de bancos, compras de passagens, trânsito e compras on-line? Sua rotina: aulas noturnas, um escritório em casa, um curso virtual de história para vestibulandos, um apanhado de questões resolvidas em seu site profissional e novas notícias sobre datas de inscrições no sistema de microblogagem conhecido como twitter.  Assim passa boa parte de seu tempo livre. Interessou-se novamente por mitologia comparada e fica tentando adaptá-la à vida moderna com graus variados de sucesso.  Pensa que estamos vivendo um privilegiado intervalo lúcido de transformações e revê “Tempos Modernos” sem o mesmo medo de ser engolido por aquelas engrenagens.  É um entusiasta do ócio, só não consegue trabalhar as parcas quatro horas por dia, sugeridas por Russell.  Gosta de frequentar a feira de flores da CEAGESP, motivo único a roubar-lhe o sono matinal, que é seu vício predileto, depois da cachaça de Salinas.  Lá chegando, encontra seu Vicente, já de pé desde as 4 horas da manhã, com um pão de queijo no estômago e um aguardente industrializado no hálito, completamente consumido em 40 minutos de caminho transcorridos em sua bicicleta barra-forte velha de guerra, com as típicas paradas estratégicas. Pensa Pedro: “É...(...)... para o Vicentão, estas coisas de ócio e organização do trabalho não saem do papel”.  Vicente, por sua vez, está de costas para a entrada da caverna e não vê as luzes fulgurosas do outro lado. Não sabe ler, não tem dois dentes no sorriso e não perde a novela das oito. Mas como todo forte se define mais por aquilo que é que pelo que não é. É um cuidador de flores. Em casa e no trabalho. Um desses doidos que conversam com flores e que afirmam que escutam respostas. Pede à mulher que enfrente a fila do banco para pagar as contas de luz, telefone, aluguel e do mercado, que ele não tem mais idade ‘pr’essas coisas’. Espera  o professor de história todas as sextas. Tomam uma cachaça mineira e falam bobagens sobre como a vida era ou poderia ser boa. E volta para o que gosta mesmo. Gosta mesmo é das flores, o que é quase um paradoxo para um sul mato-grossense que tem as mãos tão duras de enxada desde os oito anos e que nunca soube direito o que é o tal do ócio. As flores não vêem paradoxo algum.


(Feliz 2010!!!)



Um comentário:

Anônimo disse...

Dr.,lembrei-me dessa composição quando li seu texto(livre associação,com sua licença poética): http://letras.terra.com.br/djavan/65750/
A letra por si não emociona, musicada sim. A melodia é muito bonita e a interpretação dos dois também. Boa semana.