A temperatura era algo mais fria que o habitual na cidade. Às costas, um barulho de grilo, ainda ao longe, anunciava a chegada da noite, que caía ainda mais travessa e sossegadamente por aquelas bandas. Era a mesma cidade, mas bem distante. Longe uma hora. E ela - Eugênia - se questionava como é que se mede a distância por horas, “cada um e até cada coisa tem a sua velocidade, não é mesmo?”
Era uma mulher diferente. Do seu tempo. Explico: singular, mas de outro tempo. E botou na vitrola um disco de choro, de Silvério Pontes e Zé da Velha. De raiz. Ela também era de raiz. Sabia de algumas coisas e entupia as lacunas que restavam com suas opiniões, como faz todo mundo, mas de um jeito ainda mais encantador, em sua inocência quase criminosa.
Era contra esta história de mulher ter que trabalhar - em sua cidade natal todas as mulheres cuidavam das crianças. E por quê não? “Não é estranho botar outra “mãe” na sua casa, e deixar a casa desta pobre coitada sem ninguém para vigiar? Ou então mandar as crianças para a escolinha?” Não, ela não concordava com aquilo, que queimassem o sutiã de outra. Não adiantava argumentar que, se ela quisesse, poderia cuidar dos filhos, mas que a mudança havia sido em benefício daquelas que pensassem diferente dela, que isto e aquilo outro...
Não adiantava, pois era uma questão de “mudança de paradigma” e o mundo mudava para pior. Ao menos na sua opinião, que era a ordem do dia na sua casa. Ela seria a guardiã de um outro jeito de viver, para quando todos reconhecessem que haviam metido a fuça na lama.
Era uma revolucionária mal articulada? Uma revolta do tipo “paz e amor e fiquemos em casa”? Sei lá, era enigmática, pois falava demais e não dava para prestar atenção em tudo que queria dizer. Seus gestos desviavam o som de suas palavras e só chegava aos sentidos a aura daquela querelância intrigante e magnética.
Seu marido era um cara bonachão mas trabalhador. O “mas” é porque, no caso em questão, era uma contradição mesmo. Era uma surpresa em meio ao nada: qual festival de balonismo em terra improdutiva. Chamavam-no Dias.
Tinha um negócio de economia sustentável, que recrutava as pessoas do bairro para aprender marcenaria e já havia empregado inclusive alguns moradores de rua. Era coordenador de uma ONG que havia sido indicada para uma premiação importante e tinha ficado em terceiro lugar. Dizia que tentariam novamente neste ano e que, “ah! desta vez boto a minha mão naquele caneco”, já que seu time do coração só o decepcionava.
Este era o retrato do improvável casal. Haviam se conhecido em meio ao sofrimento e sobre ele se mantinham. Sobre ele se firmaram e ainda progrediam. Nunca perderam o tal do respeito ou, mais raro, o “astral”, como diziam. Ainda faltava alguma coisa para que pudessem se dar por felizes, apesar de nada disso ser explícito. Mas ela já reparava: “se ‘tiver tudo arrumadinho, casadinho, num presta, a gente tem que tá sempre correndo atrás de alguma coisa...”
E eles corriam: afora as contas que sempre os perseguiam a partir do dia vinte e os percalços com o filho do meio que sempre precisava de um empurrãozinho com as lições de casa, havia ainda o inesperado da vida. Que, por ali, era sempre aguardado. Era difícil saber se eram pessimistas ou otimistas: realistas não eram. Ou será que eram?
Ele falava bem menos, ela exaltava lembranças de uma guerra que não chegara a viver e metia a boca no trombone: políticos, trânsito, modernidade, vacinas, insegurança, e o pior: o arroz que não fizera a rapa de que ele tanto gosta: “é isto que dá trocar de marca!”.
O segredo da felicidade dos dois, apesar de tão diferentes, juntos há quase trinta anos, quem me contou foi o Manoelzinho - “é que eles são aventureiros que olhavam na mesma direção e não um para o outro, como nas histórias de amor”. Mas Odete, que é muito mais esperta que Manoelzinho - e bem menos letrada, o que a faculta ver as coisas como de fato são - falou que “eles se queriam muito bem e tinham uma boa convivência e, noves fora zero, é isto que importa. Eram bem diferentes, mas tinham valores parecidos”.
Mas eu tive uma outra visão. Não me perguntem como. Também não sei se está certo ou se resolve qualquer coisa, mais lá vai... Quando ela lhe foi servir o doce de mamão com queijo, do jeito que ele gostava, percebi que ela deu uma piscadela, que o fez levantar o sobrolho duas vezes, em sinal de concordância, ou de qualquer outra coisa... Haviam desenvolvido seu código próprio.
Cada momento infinitesimal compunha um quintal de reminiscências e reencontros, invisível e particular, onde os dois eram os jardineiros únicos. Solitários e solidários. Havia uma farta teia de sentidos entre os dois e, em meio a esta rede, as contradições eram ínfimas. Bem menores que o erotismo - tanto o veiculado em suas carnes enrugadas quanto o quintessenciado - sensível em cada gesto. E que vazava - ainda e pleno - aos borbotões.
Contradições, discrepâncias, insegurança, temores, rapa de arroz que não veio e tantas outras aflições modernas... Tudo menor, mas bem menor mesmo, que um doce de mamão com queijo.
8 comentários:
Doce de mamao com queijo me toca de uma forma muito especial! Texto que marca a cumplicidade e a força transcedental e inexplicável das relaçoes. Obrigada por me enviar sempre seus textos. Fortes, profundos e que falam sempre de um pedaço de mim, mulher.
Parabéns!
Bj grande.
Rosane Caiado.
Oi Hamer , senti saudades de vc meu querido amigo e dos seus textos também , mas valeu a pena amei doce de mamão com queijo
um cheiro grande
Família Telles
Olá meu amigo Hamer:
Texto delicioso, como mamão com queijo.
Acredito que duas são as palavras para reflexão - INDIGNAÇÃO (não perdê-la) e CUMPLICIDADE (para se manter juntos). Uma bela receita.
um abraço - Pessanha
Olá Hamer,
Parabéns pelo texto inteligente e acima disso, sensível. Muito bom ter alguma proximidade com aqueles que apreciam e ressaltam o que há de beleza e necessidade nuticional fundamental em um bom doce de mamão com queijo.
Abraço
Luís Justo
o que seriam dos casais sem cumplicidade?? Sem "a teia de sentidos" únicos? O gosto e o cheiro do mamão com queijo?
confesso! fiquei sem palavras...
Olá, Hamer.
Tudo bom?
Adorei o seu texto, representa muito bem as mulheres que sonham com a possibilidade de dedicarem exclusivamente à família.
Beijos,
Cleide
Oi Hamer,
Bela narrativa!
Uma leitura, um resgate, um sorriso! O cheiro e o gosto do doce de mamão com queijo da vovó... eu sempre ganhava a raspa da panela com a colher de pau no banquinho de madeira e palha...
Encontro sutil e simples, em meio aos 30 anos! Apaixonantes: personagens e significados. Combinação perfeita a um improvável casal! Ter raízes é construir e florescer, com cumplicidade, a dois. Silenciar para ouvir o que emerge sem palavras. Vida longa a Eugência e Dias!
A você inspiração...
beijos,
Fernanda Robert
“Do seu tempo. Explico: singular, mas de outro tempo... teia de sentidos... realistas não eram. Ou será que eram?...em terra improdutiva. Chamavam-no Dias. a partir do dia vinte e os percalços com o filho do meio que sempre precisava de um empurrãozinho com as lições de casa...., Haviam desenvolvido seu código próprio."
Bravo, adorei, beijão, Aurélia
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