21.4.10

Empatia

(Ou: "O que se ganha quando se perde")



"Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?"



(Poema em linha reta - Álvaro de Campos)



Uma garrafa verde sobre a mesa, desrosqueada com o apoio da polpa do dedão e da borda do indicador.  Fagundes atinava sobre o que é que se ganha quando se perde.  Havia parado de fumar há poucas semanas e a garrafa verde lançava um convite quase irresistível a descer os poucos andares de seu prédio e buscar alguma banca de jornal ou mercearia que já estivesse aberta àquela hora.  E a pergunta que não saía da mente: mas o que é que se ganha? 


Fagundes era o sustentáculo de todos os personagens e máscaras que ousara vestir em seus curtos anos deixados para trás e nos acanhados restantes. Agora, quatro e pouco da manhã, vítima de uma portentosa insônia, ele era a pergunta na mente de quem perguntava.  Era o personagem mais real daquele cenário de sonhos que se constituía a cidade nas horas que precediam a aurora.  Nenhum traço de vermelhos, roxos ou liláses no horizonte.  Apenas um sinal de interrogação a encher-lhe de brasas também cinzentas o imo. 

Antes que me perguntem, também não sei quem é Fagundes, tão compenetrada ou desajeitada está sua mente que nada se lhe pode perscrutar.  Nenhuma referência autobiográfica, nenhuma lembrança de sonho, de presente na infância ou de abraço da avó gorda.  Fagundes é o personagem irrevelado.  Até seu nome é o que pude perceber com uma luneta invisível que apenas mede seu exterior e que, por ventura, mirou em documentos e papéis sobre a mesa.  Mas este Fagundes que vejo no escritório às quinze para cinco da manhã tem o dom de não se revelar tão aguçado que nos mantém à cata de alguma quirera que caísse do banquete dos nobres ao cão esfomeado a lamber o chão. 


"O Fagundes, menino! Vem logo que a sopa tá esfriando! Ih, Fagundes, não me vem com essa de novo, não! Eba, Fagundes, hoje é sexta-feira!"  

"O que é que se ganha quando se perde? O que é que se ganha..."

Confesso que, de princípio, achei o nome Fagundes muito impessoal, será um sargento ou cabo da marinha?  Ou o Fagundes que vejo é apenas um outro ser na casa do Fagundes real? Decido que não dá para escrever nada sobre este personagem: ele é impenetrável, seus olhos nunca me fitam, não se dá a revelar, não é alguém de quem se possa gostar, tampouco difamar. Imaginem vocês pra que cazzo serve alguém a quem não se possa sequer difamar!?! Nada está fazendo a não ser estar insone, ou será sua insônia a própria recusa a deitar-se sob o inaudível som do verbo dormir?  

Fagundes é um personagem do imaginário meu ou seu?  Custo a crer.  Ele é mais fechado que isto.  É difícil penetrar seu mundo.  São quase seis e o céu já começa a dourar-se daquelas cores que o poetas conhecem melhor que os pintores.  Sinestesias da aurora apenas permitidas aos madrugadores que se julgam abençoados por perderem justamente as melhores horas do sono matinal. Amanhecer que traz de volta ao lar os últimos e mais insistentes boêmios. Ninguém viu o olhar direto deste morcego inquieto com sua dúvida que, mesmo posta do avesso, teria a mesma desertada solução: o que se perde quando se ganha?

Quando penso nesta questão, ato-reflexo Fagundes escreve a resposta que eu acabara de pensar: Simpatia.  O que se perde quando se ganha é simpatia.  A vitória traz em si uma tendência que, se não bem contida, nos levaria à arrogância e ao distanciamento.  Pior: a achar que a vida é um problema a ser resolvido, a ser domado.  Fagundes pensava nestas questões e recusava-se a adentrar pelo desfiladeiro de escrever a única resposta à vida: preferia, temporariamente, imaginar que houvesse infinitas.

Já vai chegar o dia com seus corcéis a charretear o Sol.  "Vem, menino, brinca que o dia está lindo! Olha no cenho da luz e da verdade, não te deixa engripar ou carcomer pela contrição.  A vida é esta e é aqui que se vive.  Sai da sua charada pessoal, beco sem saída.  A saída do beco está em recuar".  Nada tira Fagundes de sua caverna. E, eu mesmo, não sei o que faço perdendo tanto tempo a observá-lo...  Será que os convites que lancei acima também valem para mim?

Fagundes é o que há de mais árido em cada um de nós: é o trecho do sertão onde não há veredas. Eis que chega o momento do levante:  nosso personagem, por coincidência ou por total consciência do que lhe vinha acontecendo até o momento, mira o olhar em minha direção e então tudo se revela.  Não há olhos em suas órbitas, apenas um oco côncavo espelhado, onde a imagem do que é visualizado se reflete, como um negativo do seu córtex visual.  O sujeito inacessível passa a ser o mais escancarado no mínimo intervalo que leva um beija-flor para se equilibrar no ar.  Apenas o caminho até a sua vivência última daquele momento nos é negado.

E já não se chama Fagundes.  O documento sobre a mesa é um rascunho de um conto, romance ou seja lá o quê.  E mais, ele se queixa, entre os dentes, de que o demônio da inspiração hoje não lhe visitou, onde cargas d'água estará?  Talvez numa mesa de baralho no Bixiga?  Ou solicitado por um compositor infeliz a escrever uma música para um concurso musical?  Quase me compadeço de nosso ex-Fagundes e decido dar-lhe a resposta. "O que se ganha quando se perde?": empatia.  Pois quem é que nunca foi ridículo, na extrema nojentice do termo?  Quem é que não teve fé, um amor eterno e uma causa apaixonante quando estudante?  Quem é que não teve que sacrificar um cachorrinho doente?  Empatia, Fagundes, ex-Fagundes, meu velho: capacidade de empatia.  Pode escrever aí...

Fagundes vencera aquela queda de braço, ao menos por ora.  Haveria outras e eu estaria preparado.  Ambos estávamos exauridos. Deixo o escritor com a sua missão insone e solitária e que, talvez, não valha mesmo a pena.  Preciso sair, tomar ar, respirar como fazem os que tem pulmões.  Sentar-me num destes cafés e ficar horas a fio com o olhar perdido e com uma bebida sobre a mesa, intocada.  Já sei que Fagundes voltará a escrever após suas horas merecidas de sono... e vai me invocar quando eu estiver tentando adormecer, que para mim também é salutar escapar destes dias e desta cidade maluca que vocês criaram.  Será que vou tornar a atendê-lo?  

Apenas se ele aceitar perder... 

  



4 comentários:

Fernanda Robert disse...

emocionei-me muito com o texto!
saber perder... abrir mão, deixar ir...

Anônimo disse...

Hamer, acho q é um de seus melhores textos.
Tem trabalho de linguagem, metalinguagem, suspense.
Considere continuar como romance esta história.
abs,
Chuí

Anônimo disse...

é um prazer ler o que você escreve.

Hamer Palhares disse...

Achei o texto muito imperscrutável (êta palavrinha besta), para dar continuidade.
Abraços e obrigado a todos!

Hamer