Sei que vai parecer estranho e, por muitos anos, hesitei em contar esta história. Mas como não me saísse da cabeça, pensei que escrevê-la fosse um modo de curar o mal, como dizem os romancistas. Para que não a tomem por invenção, já vou antecipar que o melhor lugar do que aqui vai é entre o real e o imaginário, pois eu mesmo não sei o quanto do que pude resgatar é verdadeiro e tenho confiado cada vez menos na memória.
Estava em um ponto de táxi e ia lendo um livro de Kafka, se não me engano, A Metamorfose. Era o raiar do dia e, no ponto ao lado, algumas pessoas esperavam o ônibus, entre elas um senhor com uma bengala, um casal de adolescentes e uma mulher de seus 25 a 30 anos, com jeito de estudante universitária. Ela foi a última a entrar no ônibus e, enquanto subia os degraus, deixou cair um caderno de anotações. Ela não percebeu a perda e quando consegui resgatá-lo, o ônibus já ia ao longe. Meus acenos de nada adiantaram.
A única solução era a de folhear as páginas iniciais do diário em busca de algum dado de contato, o que fiz a contragosto. Lá constava: Julia P. Ventura e seu número de telefone. Estranhamente, não havia endereço. No final daquela manhã, consegui entrar em contato com Júlia P. Ventura que me atendeu com um certo ar de previsibilidade e de forma nada agradecida: "Ah, foi você que encontrou meu diário?", "Sim, eu gostaria de saber como posso devolvê-lo, se você...", "É melhor que você fique com ele, não quero mais saber desta história". Depois de algum tempo, me conformei a ficar com o diário, sob a promessa de não ler seu conteúdo ou comentar com ninguém antes de passados dez anos. Como achei tudo aquilo uma grande idiotice, acabei concordando e joguei o diário no fundo da minha maleta. Pedi para que anotasse meu telefone e e-mail, caso mudasse de idéia. A voz dela me passou um tom de passionalidade e, paradoxalmente, opacidade que, por muito tempo, não pude compreender.
O dia era cheio de compromissos e, ao chegar em casa, acabei me deparando com uma festa surpresa para uma das crianças. O assunto se perdeu, a maleta foi esvaziada e o livro foi para uma mala velha onde costumava despejar livros que um dia, quem sabe, poderiam me atrair para sua viagem.
Muitos anos adiante, o carro na oficina, vi-me obrigado a pegar um táxi no mesmo ponto e a história me veio à tona. Marquei na minha agenda: "Lembrar do diário...". Sete anos haviam se passado. Preparei um chá de hortelã, acendi um cigarro e estiquei-me na poltrona da escritório. Nas primeiras vinte ou trinta páginas, não havia nada de muito interessante ou repugnante, a não ser um bocado de poeira e mofo. Então, Julia P. Ventura conhece um tal de Carlos A. Penia. Era o mês de março.
Julia P. Ventura era estudante de pós-graduação em relações internacionais de uma universidade pública e planejava prestar um concurso para a diplomacia. Via-se, pelas suas memórias, que era versada em algumas línguas e uma figura correta, retilínea, objetiva. O tal Carlos A. Penia era um sujeito esquisito, ímpar e especial, pelo que ia sendo descrito: "Hoje ele me mandou um convite para um teatro na Praça Roosevelt e o convite veio acompanhado de uma begônia. E eu lá sei cuidar de begônias? Onde é que eu vou colocar isto em meu apartamento? Mas ele é interessante, uma lagarta listrada..." Ela não gostou do teatro, que era uma peça baseada em Marques de Sade, mas mostrava-se tentada, pela peça e pelo rapaz. Ele era misterioso e esotérico, o que criava uma tensão incrível com o pragmatismo e a falta de fé dela.
No dia 27 de julho, há uma anotação cuja letra destoa muito dos dias anteriores, ainda que, provavelmente fosse de Julia P. Ventura. Era um dia de sábado e concluí que ela pudesse ter bebido. Escrevia em códigos, provavelmente para escrever algo do qual só ela pudesse entender depois. "Limão na casa dois: cheflera".
Quase desisti de ler até que lá pelo mês de setembro, algo espantoso foi revelado: "Hoje, descobri que Carlos A. Penia está completamente obcecado por esta história de previsão do futuro e consultou uma cartomante para 'confirmar' o que o site disse. Estamos pensando em romper...". Mais adiante, pude perceber que o tal site era um programa ultra-elaborado, feito experimentalmente na Universidade de Pittsburgh e que permitia, com uma dada margem de erro, proporcional à veracidade e complexidade das informações fornecidas, calcular a data mais possível da morte de uma pessoa.
No começo, divertiram-se muito com a idéia e começaram a colocar dados de vários de seus desafetos, aumentando os fatores de risco. Por exemplo, com a chefe de Carlos A. Penia, fizeram um cálculo como se ela fumasse cinco maços de cigarro por dia, fosse paraquedista e tivesse duas pontes de safena. Aumentaram sua idade para 85 anos. O site retornou uma expectativa de vida de três meses. Entre o mórbido e o jocoso, iam se rindo e enamorando. Amalgamados.
Mas então, chegou um dia em que Carlos A. Penia decidiu revelar-se a Júlia P. Ventura e declarar-se totalmente apaixonado. Decidiu que deveriam se casar. Outro dia de letras incompreensíveis. Resolveram, em outubro, que fariam o teste de Pittsburgh com todos os seus dados, como um pacto de sangue moderno e sem cortes, o que requeria que ficassem sócios do programa, algo em torno de 150 dólares. Fizeram as contas e decidiram que valeria a diversão.
No dia seguinte, receberam uma confirmação de pagamento e foram convidados a preencher todos os dados, o que levou mais de três horas para cada um. Muitas perguntas estranhas como: "Com que freqüência você vai a estádios de futebol?", "Qual a sua cor preferida?", "Qual é sua estação preferida?". Hábitos de saúde, atividade física, superstições, manias, tudo foi levado em conta. O quanto acreditavam naquela previsão, em uma escala de zero a dez... Julia P. Ventura ia traduzindo as frases mais complexas. Precisaram fazer algumas ligações para parentes antigos para confirmar alguns dados da árvore genealógica. Clicaram no botão "Enviar".
A resposta chegaria no dia seguinte, mas houve um dia de atraso, escreveu uma Julia P. Ventura, também transtornada.
Eu, a esta altura, estava comendo cada página do Diário. Já havia fumado mais de uma carteira de cigarros e o escritório estava carregado. Senti-me sem fôlego, mas já não tinha outra escolha senão prosseguir, espremido entre a vergonha e o voyerismo. Buscava sinais mínimos que pudessem contradizer a história, colocava cada página contra a lâmpada forte da luminária em busca de vestígios, manchas, impressões digitais...
A resposta chegou no dia 03 de outubro, quatro dias após o envio. "Caro cliente, leve em consideração que este é um programa experimental e que as previsões aqui elaboradas foram baseadas em modelos estatísticos e apenas representam uma probabilidade". Clicaram no botão "Concordar". Julia P. Ventura: "Sua data prevista de morte é daqui há 67 anos, 9 meses e 8 dias, no dia tal de tal de dois mil e tal". Ela deu saltos de alegria e comemoraram. Mãos frias e suadas. Abriram o outro e-mail: "Caro cliente...". Parece que Carlos A. Penia já previa a resposta: "Sua data prevista de morte é daqui há 6 semanas e 2 dias, no dia tal de tal de dois mil e tal". Carlos A. Penia estava lívido, suando frio e começou a sentir-se nauseado, como uma profecia que se auto-concretizasse. Julia P. Ventura tentou animá-lo e desacreditar o programa. "Mas eles são da Universidade de Pittsburgh! Como é que pode estar errado?!"
Procuraram um médico na manhã do dia seguinte. Carlos A. Penia quase não ouvia nada do que o médico lhe dizia, e como se comportasse como um zumbi, Julia P. Ventura foi quem mais falou. Os resultados dos exames ficariam prontos em três dias. Naquela noite mesma, Carlos A. Penia decidiu que se envenenaria. Julia P. Ventura achou que fosse brincadeira, até perceber, destroçada, que era verdade. Ele exigia que ela guardasse segredo e ameaçou roubar-lhe o diário. Daí em diante, as anotações começaram a ser mais escassas e telegráficas.
Do lado de cá do Diário, já não havia mais luzes acesas na cidade e só um resto frio de chá me fazia companhia. Desfiz-me dele e decidi engolir o resto da história. Sem chá e sem cigarro.
Carlos A. Penia não quis buscar os exames e decidiu que, já tinha que morrer, o faria por si mesmo, sem apoio de médicos, de santos ou de bálsamos. Não jogaria a derradeira partida de xadrez, ao menos deste lado. A única coisa que o ligava a este mundo, após aquela notícia, era o amor de Julia P. Ventura, já que o seu, de intenso, descarado e iluminado, tornou-se frio, quintessenciado e desgarrado. Uma impressão digital perdida naquele longo diário. O seu desejo era o de que Julia P. Ventura o ajudasse em sua última missão nesta jornada rasteira que lhe parecia a vida naqueles dias. A escrita passou a ser mais poética e sofrida daí em diante.
No dia 15 de novembro, feriado nacional, Julia P. Ventura escreve: "não tive escolha, talvez tenha sido melhor para nós e melhor para ele. Assunto encerrado". Não havia nenhuma outra anotação a não ser em treze de dezembro do mesmo ano: "Daqui há dez anos, ninguém vai mais lembrar disso. Sou jovem e tenho a vida pela frente. Vou me concentrar nos estudos e abandonar esta história em um canto qualquer. Não passo um minuto sequer sem pensar nele. Onde estará agora?".
Atônito, decido entrar em contato com Julia P. Ventura. Mas ela havia me pedido segredo por dez anos! Como eu poderia me reapresentar a ela? Eu era apenas um desconhecido e curioso! Arduamente, decidi esperar. No dia em que se findou o prazo de dez anos, consegui o telefone novo dela em um site de buscas. Atendeu um senhor e tive que ser lacônico: "É um assunto de interesse dela...", "Pois vai ter que ficar para mais tarde, ela está desaparecida há duas semanas..."
Resolvi deixar o assunto para lá. Esta história estava demasiadamente arriscada. Eu tinha família, filhos e já faltavam apenas cinco anos para minha aposentadoria. Até que recebo uma mensagem em minha caixa de correio:
"Visite nosso site e conheça seu futuro. Programa sério e desenvolvido pela Universidade de Pittsburgh. Respeitamos a política Anti-Spam, seu nome foi-nos indicado pela cliente Julia P. Ventura. Caso não queira mais receber nossas mensagens, clique neste link. Caso deseje conhecer nosso método, leia nosso Termo de Consentimento e clique neste link".
Cliquei.
8 comentários:
Muito bom! Não desgrudei os olhos da tela até o fim!
Bjs
Li
Muito bom!!!
Adorei!
E quando voce vai contar o resultado do click? Vou ficar esperando. Beijo
Yone
Vai soar repetitivo, mas não desgrudei os olhos da tela até o final.
Ass: Júlia (P. Ventura)
Yone,
Também estou curioso por saber o resultado do clique, mas quem é que pode dizer?
Bj.
Meu amigo, não consegui tirar os olhos do diario de Júlia P. Ventura. Li no intervalo do meu consultório e achei surpreendente.
Um grande beijo
Déa Telles
Fantástico!!! Nem pisquei!! rs
Cliquei.. e???????
bjos
MARAVILHOSO............ROI AS UNHAS.........HAHAHAH....VC É O MAXIMO!!!!BEIJOSSSSSSSSSQDO LANÇAREMOS O LIVRO??????
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