As gotas caem vertiginosamente. Sem pára-quedas. Apenas um abrir em flor ao tocar o solo. Asfalto, terra, grama, pele, mar: o que as esperará? Sem notar que são acompanhadas por tantas outras gotas em sua viagem vertical. O destino humano em miniatura: solitários viajantes em seu imprevisível curso. Um filósofo niilista diria curso rumo ao chão, um epicurista apreciaria a queda e aproveitaria para, das alturas, observar a paisagem.
Enquanto isto, em sua varanda, Pedro aproveita a disciplina dos sons da chuva para ler. Em sua rede, recebe e faz algumas ligações e deixa de atender a outras. Um dia comum em Minas Gerais, pensa, mas que dia bom... Espera um parente para uma festa à noite. Já são quase duas da tarde de um dia vagaroso. A música de fundo quase não dá para se reconhecer, parece um jazz dos anos 40. Vassourinhas na bateria por um longo tempo. E um pouco de sono. Naquele dia, Pedro decidiu voluntariamente perder o almoço e comeu algumas das coisas que tinha na geladeira, e que não fechavam a conta para preparo de prato algum. Ator de teatro, Pedro tinha crises de identidade e financeiras em uma cidade que admira a cultura mas que não honra pagar os artistas apropriadamente. Naquele sábado, o cair constante da chuva conseguiu levar consigo todas as personas do ator. Ali, sem máscaras, sem esperanças ou angústias, Pedro chegou à beira da sacada de seu apartamento alugado e lançou um olhar longo para a rua, onde um mendigo bêbado andava de modo desnorteado.
Seu Zé. Nome de nascença Jaime. Hoje se apresenta como Seu Zé, tamanha a repetição deste bordão. Há quinze anos na rua. Sua história só pode ser contada de forma concatenada por um narrador externo ou onisciente, daí que seja sempre tão irreal e tão comum. Perdeu a esposa e os dois filhos, que deixou no estado do Mato Grosso. De lá para cá, traições dos dois lados entornaram no chão o caldo dos sonhos de conseguirem se mudar para a capital mineira. Perdeu o emprego pela bebida e trocou a bebida pelo crack. Na rua e na chuva, Jaime/Zé sente o rosto frio pelas gotas que se misturam em sua face embargada. Não consegue ver horizontes. Hoje ainda não se sentiu fissurado pela droga mas sentia o estômago e o corpo roncar de fome e de ressaca. Um carro prateado pára e lhe assobia: oferecem-lhe um tapawer com uma comida típica. Mais um dia de Belo Horizonte.
Veridiana e Claude. Param o carro e entregam um bocado de comida de bom tempero e morna para um indigente envelhecido das ruas de BH. Claude eleva a voz com Veridiana porque ela deixara chover dentro do carro novo. Veridiana adota a tática de não ouvir para não brigar e expira mais forte ao calar-se. Claude é arquiteto e tem um escritório nas Mangabeiras; Veridiana, enfermeira-chefe de um Pronto Socorro. Moram em um condomínio de classe alta no bairro de Pampulha. Claude, nascido em Toulouse, ligado em artes plásticas, cinema francês e italiano. Veridiana, mineira, caseira, amorosa, fã de MPB, Toninho Horta e do Clube da Esquina, em especial. Conheceram-se em uma noite chuvosa no Carnaval de rua de Diamantina, sua cidade de nascença. Em meio a uma chuva de fogos de artifícios, reconheceram-se ao primeiro sinal.
Veridiana se sentia totalmente sem ação quando via um velho morando na rua e indignada quando via uma criança nesta situação. Indignação, aquela mosca sem asas. Só o que a fazia ficar paralisada a este ponto era o pôr do Sol visto da Raja Gabaglia. A cidade assumia um tom amarelo envelhecido, o tom do indigente se espalhava pelos prédios, morros, pelos botequins e pela sem graceza de sua vida com Claude. Sinal amarelo. Claude avança o vermelho e atropela um senhor de seus 40 anos. Sangue varrido pela chuva: sem leite e sem rosa do povo. A visão borrada não permitiu a ninguém identificar o número da placa do carro que acelera quase desgovernado. Um romance que chegava ao fim sem fogos e sem artifícios.
Pedro estranhara a demora do primo de Sete Lagoas e tenta chamá-lo pelo telefone. Nada. Reinaldo estava, neste momento, tentando socorrer um senhor desacordado ali na Rua Rio de Janeiro, próximo ao antigo Teatro Clara Nunes. Não conseguira identificar a placa do carro que fugira em alta velocidade. Teve a ajuda de um bêbado para tirar o homem da rua. Conseguiu ligar para o 192 e pedir auxílio que, para seu espanto, veio de modo impressionantemente rápido. Ele, amarelo de raiva, o outro de fome e o terceiro de hemorragia. O encontro daqueles viajantes solitários reacende a leveza alquímica de foto antiga do pôr de Sol que não viera naquela tarde de céu chumbo. É o que fica registrado na lente e na memória de Hernane que, do quinto andar, espreme, em sépia, um quinhão de sutileza da amarga cena. Gotas verticais perduram. O destino humano em miniatura...
3 comentários:
Olá Hamer:
A intimidade com BH lhe permite um passeio, que só quem é de lá ou um dia foi adotado lá, pode entender.
você brilha, meu caro.
Pessanha
A vida ao longo do tempo vai se tornando uma foto amarela, só não pode perder o brilho. Paradoxo? Belo texto amigo. Beijo
Yone
Hamer
Mesmo sem ser epicurista, que eu saiba, aprecio a paisagem no percurso que antecede ao meu “abrir-me em flor”...
Abraço
Menezes
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