Heráclito e Parmênides. Há quem diga que depois da discussão entre a estabilidade e a mudança não houve outra questão filosófica tão importante: “O que vemos é um objeto em constante transformação, como o homem que não se pode banhar duas vezes no mesmo rio ou será a mudança apenas uma ilusão da nossa compreensão (o que é, é e o que não é, não é...)?”
Longe de minhas pretensões aventurar-me por terreno tão movediço onde tantos outros mais vigorosos tentaram extrair luz e deram com os burros n’água. Mas que dá uma coceira de se lançar a pensar se as pessoas realmente mudam, ah! isso dá...
Façam suas apostas: há quem diga que a personalidade, que é a soma dos fatores ambientais e herdados (caráter e temperamento, respectivamente), e que se firma por volta dos 18 anos. Daí em diante, apenas pequenas mudanças são possíveis, sendo que o grosso da personalidade já está posto. Resumindo, o oleiro precisa moldar o vaso antes que o barro esfrie. Em contrapartida, há quem afirme justamente o contrário, como Karl Jaspers, fundador da psicopatologia: o ser humano é sempre incompleto e incompletável - como se o mais importante fosse o desenho no vaso, feito após o barro frio...
Quiçá um meio-termo aristotélico seja possível: a capacidade de mudança pode ser, ela mesma, uma característica e função da personalidade, ou, ao menos, de algumas constituições de personalidade. Pode ser que a coisa se dê da seguinte forma: fulano aprende ao enfrentar um novo desafio (seja pela dor ou pela recompensa) e traz em si os novos ganhos deste aprendizado. Bem ao estilo de Hércules, que embebeu suas lanças no veneno da Hidra de Lerna para as próximas etapas de sua jornada.
Já para outros, contudo, o tombo não faz com que se busque o equilíbrio. Há sempre um terceiro envolvido - pessoa ou entidade, real ou irreal - que pode ser recrutado para dividir o fardo do tropeço: “o chão está irregular”, “algum mal-criado jogou uma casca de banana no caminho”, “eu sou azarado mesmo”, “o mundo conspira para meu fracasso”... as possibilidades são muitas e o mecanismo persecutório, incessante (ou como preferia Quintana - a paranóia desconfia de tudo e de todos, menos de si mesma...).
Isto poderia explicar porque alguns preferem a inércia, ainda que atrelada a uma situação patológica ou de sofrimento - a dependência de drogas, o alcoolismo, o sedentarismo ou uma postura emocional rígida - à mudança. Dois exemplos desta atitude de estagnação estão nos filmes “Factotum - Sem Destino” e “Os Dispensáveis”. A permanência, nestes casos, é o não assumir o compromisso de co-criação da realidade, onde o sujeito é, ao mesmo tempo, autor e personagem de seu romance pessoal: toda mudança traz em si o medo do desconhecido, os folguedos da novidade (ainda que assustadores).
Por vezes, presencia-se pessoas em estágios iniciais de mudança - por exemplo, ao deixar de consumir uma droga de abuso ou álcool, ou ao se livrar de sintomas paralisantes de ansiedade ou depressão - onde o novo status leva a um desequilíbrio de forças na relação familiar ou conjugal, o que faz com que uma pressão - consciente ou inconsciente, intrapsíquica ou interpessoal - carregue em sua vazante o embrião revolucionário da conquista. Não são só determinantes pessoais que emperram a capacidade de mudança: a pressão dos pares, da mídia, da família, da adequação social, do politicamente correto, etc...
Cabe aqui uma advertência! Para quem pensa que se ganhasse na loteria ou se ficasse seriamente doente e incapacitado, aí, sim, mudaria alguma coisa em sua vida: ledo engano... isto já foi pesquisado e, aproximadamente um ano após o evento (sorte ou azar profundo), a qualidade de vida e satisfação voltam ao mesmo patamar anterior. Desta feita, correndo o risco de cair no lugar-comum, o que permite a reviravolta não é tanto o que o mundo faz com a pessoa, mas sim o que esta faz com o que o mundo lhe propõe enfrentar. Ou seja, paradoxalmente, algumas grandes mudanças podem não se realizar com fortes pressões externas. O provocativo filme Ikiru (Viver) de Akira Kurosawa mostra diametralmente o contrário: um funcionário público que, diante de um forte revés revê seus valores e volta-se ao desconhecido espaço de pensar mais nos outros que em si próprio.
Em épocas de fim de ano é frequente que as pessoas desfrutem de um tempo extra para relaxar e acabem fazendo um pequeno balanço do terreno percorrido e dos desafios vindouros: iniciar uma poupança ou uma atividade física, aprender uma nova língua e a falar não, deixar de beber por dois meses, parar de fumar pela vida toda, frequentar uma religião, ler um livro por semana, arrancar os dentes do siso, oferecer-se ao voluntariado...
Nada disso, no entanto, gera uma real mudança se dois aspectos não forem claramente observados: o primeiro deles é a resposta à simples pergunta: “Onde estou?!?”. A meu ver, é uma pergunta mais prática que a hermética e emblemática “Quem sou eu?”, uma vez que esta é insolúvel e gera mais calor que luz. “Onde estou?” remete a pensar em que lugar de uma dada caminhada o sujeito se encontra - ainda que não saiba direito como ou porque ali está - e qual é o leque de possibilidades que se abrem em seu horizonte (alguns dos panoramas só são compreensíveis aos visionários!). Só a partir de uma bússola afinada com o momento e a situação presente é possível medir uma real evolução. O segundo aspecto é o que, certa feita, ouvi um historiador chamar de “espiritualidade”: sem as conotações inter-excludentes das múltiplas vertentes religiosas, espiritualidade significa simplesmente pensar mais nos outros e menos em si mesmo.
É evidente que alguns não aceitarão estas duas sugestões, uma vez que lhes parecerá simplório ou equivocado e devo, consequentemente, concluir que não fui capaz de responder à questão que deu título a este pequeno esboço - mesmo que tenha sido uma bela isca... Ainda assim, despretensiosamente, sugiro aos leitores que reflitam sobre estas duas pequeninas tentativas, que estão longe de ser uma demolição de um edifício e sua reconstrução desde a fundação, mas, tão somente, abrir as janelas e deixar a brisa e a luz desfilarem mansamente, revelando cores, sons e aromas que ficaram esquecidos em seu potencial de aconchego, criação, transformação e beleza...
7 comentários:
Querido
gostei bastante do seu novo texto....... ele me deixou intrigada....exercício do livre pensar....
Assim as pessoas mudam sim.... mas elas não podem se dar conta que mudaram...pois as mudanças exigem novos arranjos...então dizer que não muda já faz parte!!!
beijos
Eroy
Grande Hamer,
Medico, Filosofo e poeta! Parabens pelo texto e pelas reflexões.
Cara, boa sorte, va em frente e que 2010 venha repleto de realizacoes e renovacoes!
Abraco,
Paulo Cunha
Grande prosador e filósofo:
Muito bom o texto!!
Concordo com a idéia de que o vaso já está construído por volta dos 18 anos, mas o acabamento vai sendo feito sem pressa no decorrer de uma vida, secundário ao aprendizado de derrotas e triunfos.
Um grande abraço
Iúri
Bro... Parabéns!! Muito bom mesmo! Vc é um escritor e tanto! Publique isso logo.
Particularmente acredito que espiritualidade consiste em algo mais do que pensar no outro. Penso num conceito que envolva "o imponderável".
Abraço
L
Olá Hamer:
Parabéns por tudo.
Quero aqui fazer uma contribuição com um pequeno texto de alguém que era "o cara":
“Talvez não tenhamos conseguido fazer o melhor,
mas lutamos para que o melhor fosse feito...
Não somos o que deveríamos ser,
não somos o que iremos ser.
Mas, graças a Deus, não somos o que éramos.
Martin Luther King
grande abraço - Pessanha - Cajuru
Prezado Hamer
Tocante! Vivo! Inteligente e sofisticado!
Caminante no hay camino, se hace camino al andar.
Grande abraço
Luiz Antonio
• "0 homem é precisamente o que ainda não é. O homem não se define pelo que é, mas pelo que deseja ser." (ORTEGA Y GASSET, 1963, apud SALVADOR, 1977, p. 160).
Mudar -Clarice Lispector
” Mude, mas comece devagar,
porque a direção é mais importante
que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.
Quando sair,
procure andar pelo outro lado da rua.
Depois, mude de caminho,
ande por outras ruas,
calmamente,
observando com atenção
os lugares por onde
você passa.
Tome outros ônibus.
Mude por uns tempos o estilo das roupas.
Dê os teus sapatos velhos.
Procure andar descalço alguns dias.
Tire uma tarde inteira
para passear livremente na praia,
ou no parque,
e ouvir o canto dos passarinhos.
Veja o mundo de outras perspectivas.
Abra e feche as gavetas
e portas com a mão esquerda.
Durma no outro lado da cama…
depois, procure dormir em outras camas.
Assista a outros programas de tv,
compre outros jornais…
leia outros livros,
Viva outros romances.
Não faça do hábito um estilo de vida.
Ame a novidade.
Durma mais tarde.
Durma mais cedo.
Aprenda uma palavra nova por dia
numa outra língua.
Corrija a postura.
Coma um pouco menos,
escolha comidas diferentes,
novos temperos, novas cores,
novas delícias.
Tente o novo todo dia.
o novo lado,
o novo método,
o novo sabor,
o novo jeito,
o novo prazer,
o novo amor.
a nova vida.
Tente.
Busque novos amigos.
Tente novos amores.
Faça novas relações.
Almoce em outros locais,
vá a outros restaurantes,
tome outro tipo de bebida
compre pão em outra padaria.
Almoce mais cedo,
jante mais tarde ou vice-versa.
Escolha outro mercado…
outra marca de sabonete,
outro creme dental…
tome banho em novos horários.
Use canetas de outras cores.
Vá passear em outros lugares.
Ame muito,
cada vez mais,
de modos diferentes.
Troque de bolsa,
de carteira,
de malas,
troque de carro,
compre novos óculos,
escreva outras poesias.
Jogue os velhos relógios,
quebre delicadamente
esses horrorosos despertadores.
Vá a outros cinemas,
outros cabeleireiros,
outros teatros,
visite novos museus.
Se você não encontrar razões para ser livre,
invente-as.
Seja criativo.
E aproveite para fazer uma viagem
despretensiosa,
longa, se possível sem destino.
Experimente coisas novas.
Troque novamente.
Mude, de novo.
Experimente outra vez.
Você certamente conhecerá coisas melhores
e coisas piores do que as já conhecidas,
mas não é isso o que importa.
O mais importante é a mudança,
o movimento,
o dinamismo,
a energia.
Só o que está morto não muda !
Repito por pura alegria de viver:
a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena!!!! “
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