(ou: "Uma historieta baseada em fatos e boatos...")
Como de costume, acordou em cima da hora. Correu para a padaria da esquina. Vinha pensando se deveria parar de beber ou não. Geralmente pensava nisto às segundas-feiras, mas desta vez sentia que a coisa toda estava cada vez mais séria... Decidira fazer como sempre, ouvir as notícias do dia, quentes e mornas no jornal, para ter do que reclamar. Neste dia, como era habitual, já lhe chegaram com um cheiro de velhas e emboloradas: corrupção à miúda e à larga, um piloto que admite ter batido o carro de propósito (obviamente não sem propósitos...), a compra ou não compra de novos caças para a força aérea, terrorismo, o Senador que sai ou não sai do Congresso, colunistas indignados e mais dinheiro em cuecas e meias... Nada disso, nem todos os impactos somados repercutiram tanto quanto a bomba ouvida ao balcão da padaria - seria um sinal a lhe motivar para retornar para sua casa e para a família, há tanto tempo olvidada?
Iniciou, como de costume, conversa com o seu Zé, figura lendária da Vila Mariana, como tantos outros micro-verdadeiros-heróis nordestinos, de sotaque difícil, fala rápida e mãos ligeiras no preparo de cafés, médias e na lavagem das louças. Seu Zé era como um noticiário, um outdoor do tamanho de gente, um blog do século retrasado, um inventário de histórias não publicadas...
“Escuta, seu Zé, aquele professor cego que vinha aqui sempre, sumiu... o que aconteceu com ele?”
“Ah, faz uns dois meses que ele morreu, não sabia não?” (Dito assim mesmo, à queima-roupa e sem levantar os olhos do que estava fazendo).
“Não! Não sabia, que coisa! Ele estava doente? Puxa vida!”
“É, ele tava doente faz um tempinho... me disseram que ele tinha câncer de algum canto aí que eu nem sei de onde era, visse?”
“Êta doencinha...” - Àquela altura, começou a pensar em parar com aquela vida besta... e confessa para si o medo de morrer do mesmo jeito.
Seu Zé, levanta a sua cara velha, de rugas caprichosamente mal distribuídas, e assume um ar ainda mais árido: “E aí o médico falou que ele tinha só mais alguns meses... ele falou: então tá... começou a ficar em casa, quietinho...”
“Ele vivia sozinho?”
“É, vivia, sim. Mas ultimamente, a gente não sabia por onde ele andava. Ele recebia dinheiro de duas aposentadorias - uma dos Estados Unidos - que ele trabalhava por lá antes de ficar cego e outra do Brasil, então ia se mantendo e não saía daqui... (Ia falando, assim, sem ponto nem vírgula, que é até difícil da gente imitar...) e ele tinha um apartamento aqui pertinho e deu o apartamento para uma casa de caridade...”
“É mesmo! Que bacana! Ninguém mais faz isso hoje em dia, não é?”
“Pois é. E também deu aquele cachorrinho dele, uma semana antes de morrer...”
Aquilo foi demais, não conseguiu prestar mais atenção naquela fala embolada do seu Zé, a exclamação enroscou-lhe na garganta e não havia manteiga ou leite que empurrasse para baixo: imaginar uma pessoa cega, em seu apartamento, esperando a morte, provavelmente com dor, e, ainda por cima, se desfazer do cachorrinho. Que grandeza de alma, que desapego, que solidão... Se alguém podia se desprender do seu cãozinho quando nada mais tinha, ele também podia se desvencilhar da vida de balcão...
O apartamento, vá lá, tudo bem, ele não iria mais precisar dele, mas dar o seu último companheiro... Deve ter pensado que, quando morresse, o cachorrinho poderia ficar sem ninguém e que era, afinal, o momento de doá-lo. Isto deve ter sido uma das experiências humanas mais difíceis, mais terríveis...
Mas aí pôs-se a inculcar que era também o que inaugurava o que se pode chamar de experiência humana. Sem testemunhos, sem colunas de jornal, apenas as lembranças de como a vida - dura, dolorida, exata, um relógio sem cuco - também pode ter seus poucos momentos de inflexão onde tudo, realmente, ganha vida e, por isto, vale a pena...
E a saudade, dele, o grande professor cego, com quem nunca conversara, ao vê-lo chegar provocando todo mundo com seu bom humor de um oceano sem essa claridade que nos ofusca, pedir um pãozinho na chapa e um café longo: tantas lições no balcão de uma padaria e ninguém para aprender...
Então o homem parou de refletir. Terminou seu desjejum, e, como de costume, pediu a comanda, pagou a conta, agradeceu uma e outra vez mais e decidiu seguir o seu caminho.
5 comentários:
H maiúsculo,
essa estória toda (ou seria história) piorou a minha abstinência de cafeína.
Culpa sua! E agora?
Muitos beijos
L.
A vida de verdade não é feita de notícias ou de manchetes.
A vida de verdade é assim, feita de fatos e boatos...
HAMER,
EXCELENTE!
FIQUEI LENDO ATÉ O FINAL E PENSANDO : "SERÁ QUE É DO VERÍSSIMO?", "COMO DETALHA AS CENAS QUE É POSSÍVEL 'ENXERGAR' A SITUAÇAO"....
PARABÉNS !!!! VC TEM QUE COMEÇAR A ESCREVER PARA JORNAL, FAEZR LIVRO, ETC.
MANDA MAIS....
ABRAÇAO
DO AMIGO
CRIPPA
Mais um boato sobre o professor cego...
Sabe pra onde ia parte da aposentadoria globalizada do nosso herói solitário? Lembro dele contando essa história, meio avermelhado e rindo muito, navegando em sua gôndola na padaria.
Os dólar-idos iam parar nos bolsos das amantes profissionais! E diante da surpresa do ouvinte, ele logo alardeou:
- Ué? Cego não pode?! Nessas horas até volto a enxergar...
Caríssimo,
O texto é todo Hamer.
Observador e integrador da humanidade,
Especialmente aquela ao seu lado,
Que a gente teima em desprezar.
Assim a metáfora do cego é sublime,
Fiks
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