3.12.09

Mestres atemporais

Esta semana foi marcada pelo Dia Mundial de Combate à AIDS.  Há quem diga que a pior doença é a que se tem, mas a AIDS foi frequentemente comparada ao Câncer como uma das doenças mais temidas e constrangedoras.  Por sorte, há sinais de mudança...
A história da AIDS para mim foi muito marcante, pois surgiu antes do início de meus estudos médicos e, durante toda a faculdade e residência médica, nos idos dos anos 90, deparei-me diversas vezes com pacientes com esta doença (ok, a AIDS é uma síndrome...).  Uma das características que mais me chamam atenção no combate à AIDS é a velocidade das mudanças: temos 27 anos desde a descrição do problema e, quando comparamos a outras patologias, a evolução em termos de diminuição do preconceito e melhora das condições de vida do portador do HIV são acachapantes. O investimento em pesquisa, o processo de quebra de patentes (que ganhou por 52 votos a 0 na Câmara dos Lordes, lembram?) e a cobertura para o tratamento no sistema público (o Brasil é um dos países exemplo neste quesito) são alguns dos ventos desta mudança. No entanto, o risco de desemprego, subemprego e discriminação ainda são bem reais em nosso meio (o estigma social é mais importante que o grau do adoecimento, nestes casos).
Voltando às lembranças, durante a graduação, na saudosa Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, participei da construção da Liga de Combate à AIDS e às DSTs.  Era uma época de medicamentos muito mais tímidos e menos eficazes que os de hoje, com mais efeitos colaterais e menos alvos terapêuticos. 
Lembro-me que fazíamos plantões de apoio psicológico aos pacientes HIV+.  Os plantões consistiam, simplesmente, em passar 10 a 20 minutos conversando com o paciente que estava internado, ouvindo suas angústias, segurando suas mãos, marcando presença.  Não podíamos fazer nada, nem prescrever medicamentos, nem oferecer expectativas fantasiosas. Muitas vezes atrapalhávamos o trabalho de enfermeiros, técnicos de enfermagem e até da equipe médica. Os pacientes viviam, no mais das vezes, um misto de culpa, sofrimento físico e desespero e, como alunos, apenas podíamos marcar presença. Mas eles nos esperavam! E, invariavelmente, tinham algo a contar: lembranças da infância, um exame que saiu melhor que o anterior, a esperança de receber um parente que há tempos não via, a aceitação pelos pais de sua doença, uma notícia veiculada no jornal das nove, o medo da morte, o desejo de morrer. Nós só podíamos, invariavelmente, escutar, esperar, confortar, esperar, esperar...
A experiência, para nós alunos, era conflitiva, muitas vezes angustiante, mas, sempre, enriquecedora e luminosa.  Dali surgiram raios de humanização que persistiram, e persistirão, no modo de conduta de cada um dos membros da Liga: o dever do médico, como já dito, é o de curar mas também o de amparar.  Em épocas de Medicina Baseada em Evidências isto pode ficar esquecido - é bom lembrar que a sabedoria é a tomada de decisões qualitativas a partir de uma realidade quantitativa.  
O aprendizado com cada um dos pacientes da Liga de Combate à AIDS e às DSTs certamente contribuiu para minha escolha de especialização, que foi a Psiquiatria (etimologicamente, Cura da Mente). Muitos deles sofriam de alguma dependência química; ansiedade e sintomas depressivos eram quase que uma cicatriz universal de tantos fardos concomitantes. 
Aprendi com estes mestres-pacientes que é preciso, para fazer com gosto o trabalho de clinicar (etimologicamente, inclinar-se), saber assistir o ser humano em cada doente, escutá-lo em profundidade, estar presente para compreender seu sofrimento. Por fim, ter paciência para lidar com situações em que, muitas vezes, só a cartada final do tempo pode trazer alívio.
A todos aqueles mestres pacientes, muitos em memória, meu obrigado extemporâneo.

7 comentários:

Anônimo disse...

Muito legal Hamer. Sensibilidade de poucos...

Abraços
Emérita

Anônimo disse...

Lindo o post, moço! Meus parabéns! Estou respondendo aqui porque não consigo publicar comentários no próprio blog, rsrsrsrs...

Beijos!

Ana

Mariane disse...

Hamer,

Lindo texto! E o mais interessante foi a possibilidade dessa vivência em todos os sentidos. Fiquei eu aqui pensando se seus colegas conseguiram captar o enorme conhecimento percebido e vivido por você, de qualquer forma você faz a diferença, sempre!

Bjs

Mariane.

Menezes disse...

Belíssimo texto

Menezes

Anônimo disse...

Olá querido,
Começo aqui a acompanhar o blog e de supetão já me "presenteia" com tamanha dose de sensibilidade e uma forte demonstração de pessoalidade com que se envolve em seu meio. Li agora o texto sobre as ações afirmativas e entendo que aos homens hoje falta esse item essencial e revolucionário: o envolvimento direto e pessoal com o que se coloca a sua frente.
Parabéns pelo blog! Beijos,
Nati.

Anônimo disse...

Olá Hamer:
Parabéns pelo texto e, principalmente pelas reflexões.
Acredito que poderia definir seus sentimentos numa palavra "mágica" que é GRATIDÃO.
E, que bom senti-la...

abraços - Pessanha (51) - completando 28 de formado!

Anônimo disse...

caro Hamer como é bom ler as coisas que você está nos convidando a refletir e sentir.
Abraço
Eroy